Um Apólogo - Exercícios de Gramática

Um Apólogo

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:

- Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?

- Deixe-me, senhora.

5 - Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

- Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

11 - Mas você é orgulhosa.

- Decerto que sou.

- Mas por quê?

- É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?

16 - Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?

- Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...

20 - Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...

- Também os batedores vão adiante do imperador.

- Você é imperador?

25 - Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

28 Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana - para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

36 - Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima.

40 A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

48 Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:

54 Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

59 Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

- Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

64 Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: - Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

Leia o texto Um Apólogo, de Machado de Assis, e julgue os itens abaixo - Certo ou Errado

1- Ocorre, na introdução, a figura de linguagem chamada onomatopeia.

2- Na primeira linha, o uso de “uma”, em “uma agulha”, demonstra que aquela agulha seria uma ente tantas.

3- Ocorre hipérbato na primeira oração da interrogativa da linha 2.

4- O uso do Imperativo em 3ª pessoa, na linha 4, demonstra a informalidade no trato entre os interlocutores.

5- Os pronomes “se” e “sua”, linha 10, é incoerente com a conjugação dos verbos no último período dessa mesma linha.

6- Em “A senhora não é alfinete, é agulha”, linha 8, ocorre, para efeito estilístico, a elipse de um sintagma nominal.

7- A oração “sempre que me der na cabeça” é uma objetiva direta da oração principal “falarei” -linha 6.

8- A fala da agulha, estar “cheia de si”, refere-se, também, ao estado da linha, quando “enrolada” em forma de novelo -linha 2.

9- O vocábulo “a”, nas duas aparições na linha 10, possui a mesma função sintática, mas classes gramaticais diferentes.

10- Na linha 15, “os”, em “quem os cose”, é objeto direto pleonástico.

11- O uso das reticências, linha 19, é justificado pelo fato de haver mais ações da agulha a serem enumeradas.

12- Na linha 17, “quem os cose” é uma oração subordinada substantiva objetiva direta.

13- Na linha 23, a frase desmistifica a afirmativa da agulha que diz que quem vai adiante é o mandante.

14- O pronome demonstrativo de primeira pessoa, em referência ao discurso, refere-se ao que será dito; logo, o uso de isto, l.29 - “que isto se passava”-, demonstra que o narrador não quer se referir apenas ao que já falou, o diálogo inicial, mas também a todo o acontecimento que “se passava em casa de uma baronesa”.

15- “Para não andar atrás dela”, l.30, é uma OS Adverbial Causal reduzida de infinitivo.

16- O uso do acento indicativo da crase em “à casa da baronesa”, l.28, é facultativo assim como quando ocorre antes de pronomes possessivos.

17- O verbo “coser”, presente no texto, é homógrafo de “cozer”.

18- As expressões “pelo pano adiante” e “ente os dedos da costureira”, l.33 e 34, exercem função sintática de um advérbio.

19- O adjetivo uniforme “agéis”, l.34, refere-se, conforme entendimento do texto, à linha e à agulha.

20-Em “a melhor das sedas”, l.34, o adjetivo está no grau superlativo relativo de superioridade.

21- A expressão “a eles”, l.38, trata-se de um complemento nominal.

22- “Caindo o sol”, l.45, é uma OS Adverbial Temporal reduzida de gerúndio.

23- No primeiro período da linha 48, o uso da vírgula é facultativo.

24- A grande “experiência” do alfinete, linhas 59 a 63, é demonstrada, também, no uso da 2ª pessoa no trato com a agulha, quando lhe dá o conselho.

25- “Onde me espetam”, l. 63, é um adjunto adverbial de lugar.

26- No último período do texto ocorre uma metáfora da vida profissional do “professor de melancolia”.

27- Para transformar o último período do texto em discurso indireto, coloca-se uma conjunção integrante introduzindo a OSS Objetiva Direta, que é o próprio discurso indireto, com o verbo auxiliar no perfeito do indicativo.

28- Linha 27, “prendo, ligo, ajunto” são O. Coordenadas Assindéticas.

30- “Orgulhosas”, l.33, é adjunto adverbial de modo.

31- “Aberto pela agulha”, l.40, adjunto adnominal de “Buraco”.

32- “Silenciosa e ativa”, linhas 41, são adjuntos adnominais de “agulha”.

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Rogerio Bandeira
Enviado por Rogerio Bandeira em 12/08/2009
Reeditado em 22/10/2009
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