Língua padrão, gramática e aula de português: para além das palavras de ordem

Língua padrão: um peixe ensaboado? Entretanto, se todos concordam com a existência e as vantagens da língua padrão, pouca gente – se é que há alguém – será capaz de descrevê-la rigorosamente. Pode-se dizer que aquilo que se chama‘língua padrão’ é um peixe ensaboado! E tanto mais difícil será definir, quanto mais transformações sociais, políticas e econômicas se passem em curto espaço de tempo em uma sociedade, como é o caso do Brasil. De tal modo que um gramático conservador, munido de compêndios, que passasse um mês diante de noticiários de televisão ou lendo jornais e revistas acabaria por declarar, desesperado, que ninguém mais sabe falar e escrever português no país.(FARACO, C.A. e TEZZA, c. 1992)

O homem está profundamente imerso nas palavras, que diariamente absorve e que constantemente utiliza.

As suas crenças, preconceitos, ideais, aspirações constituem a atmosfera moral e intelectual, na qual ele vive; constituem o seu AMBIENTE SEMÂNTICO, seu MUNDO LINGÜÍSTICO, no processo de socialização e desenvolvimento da personalidade, onde passa a se comunicar, continuamente, consigo e com os outros, através da linguagem.

Em praticamente toda sociedade humana, os grupos dominantes da comunidade – os grupos detentores dos bens políticos e econômicos e da cultura prestigiada – acreditam que são também os detentores de um língua mais correta, mais bonita, mais cultivada. Assim, aquilo que vem do alto, das classes dominantes é considerado indiscutivelmente digno de ser imitado, e passa a ser considerado como um valor natural, incontestável, como se suas qualidades brotassem da própria natureza das coisas desde o início da eras... No mesmo movimento, tudo o que não se encaixa nesse modelo é considerado “feio”, “indigno”, “corrompido”, “inculto”.

O preconceito lingüístico na sociedade brasileira é, na verdade, um entranhado preconceito social, ou seja, a língua é vista como parte constitutiva da identidade individual e social de cada ser humano – em boa medida, nós somos a língua que falamos.

A questão, como bem sabemos, é que no senso comum só se considera culto aquilo que vem de determinadas classes sociais, as classes sociais privilegiadas. Quando dizemos que uma pessoa é muito “culta”, que tem muita “cultura”, estamos dizendo que ela acumulou conhecimentos de uma determinada modalidade de cultura, uma entre muitas: no caso, a

cultura baseada numa escrita canonizada, a cultura livresca, a cultura que é fruto da produção intelectual e artística valorizada pelas classes sociais favorecidas, detentoras do poder político e econômico.

Por outro lado, para tentar designar as variedades lingüísticas relacionadas a falantes sem escolaridade superior completa, com pouca ou nenhuma escolarização, moradores da zona rural ou das periferias empobrecidas das grandes cidades, aparece freqüentemente na literatura lingüística a classificação língua popular, norma popular, variedades populares etc. Com isso, cria-se uma distinção nítida entre norma culta e norma popular.

É imprescindível salientar que o conceito de “erro”, do ponto de vista sociológico e antropológico, se baseia numa avaliação negativa que nada tem de lingüística: é uma avaliação estritamente baseada no valor social atribuído ao falante, em seu poder aquisitivo, em seu grau de escolarização, em sua renda mensal, em sua origem geográfica, nos postos de comando que lhe são permitidos ou proibidos e outros critérios e preconceitos estritamente socioeconômicos e culturais. Por isso, muitas vezes, quando uma forma lingüística nova se incorpora à atividade lingüística dos falantes prestigiados, ela deixa de ser considerada como “erro”. Paradoxalmente, a língua-padrão tem funcionado não como um fator de integração social, mas de discriminação e exclusão.

Compreendemos aqui que se faz necessário dimensionar o problema da padronização lingüística historicamente, porque é nosso passado de sociedade colonial e escravista que ainda embaraça um tratamento adequado dessa importante questão. Nossa história gerou uma sociedade marcada por profundas desigualdades sociais. Até hoje não conseguimos distribuir adequadamente a riqueza nacional, os bens da cultura escrita e os outros bens de cidadania.

Por isso, do ponto de vista lingüístico, os nossos valores continuam sendo os da reduzidíssima elite letrada do século XIX. Essa elite sonhava com uma sociedade branca e européia e, por isso, abominava a nossa diversidade étnica e lingüística.

Ainda hoje dizemos – que somos um país monolíngüe, quando, de fato, somos um país multilíngüe: aqui são faladas aproximadamente 120 línguas indígenas, várias línguas de imigração (principalmente no centro-sul) e ainda há resquícios de línguas africanas (o que sobrou da poderosa repressão da máquina escravista).

Ainda hoje temos dificuldade de reconhecer que o português falado no Brasil é caracterizado por imensa diversidade e avaliar essa diversidade positivamente. O sonho homogeneizador da elite do século XIX ainda nos persegue. Em conseqüência, negamos legitimamente social a vários falares brasileiros (em especial aos do português popular) e os menosprezamos e até os ridicularizamos, tratando seus falantes como “ignorantes” e “incultos”.

Isso é herança de uma elite que temia o “vulgo” e que, em termos lingüísticos, dizia que ele corrompia e destruía a Língua Portuguesa. Por isso, no momento em que o país se tornou independente e levantou-se a questão da língua padrão, aquela elite desenvolveu uma atitude excessivamente conservadora e purista, fixou um padrão distante da própria variedade que ela falava, e, para garanti-lo, criou uma cultura do erro que ainda hoje perturba nossas relações com a Língua Portuguesa em geral e com a língua padrão em especial

Segundo Bagno (1999), o ‘erro de português’, que amendronta, intimida e humilha tanta gente, simplesmente não existe. Haveria, na verdade, diferentes variedades do português. Cada uma delas perfeitamente válida em seu contexto, todas merecedoras de respeito.

Nesse sentido, não é difícil observar como a Língua Portuguesa é falada de modos diferentes pelo Brasil afora. Também não é difícil de observar como a língua varia conforme o estamento social dos falantes e como nós mesmos mudamos continuamente nossa maneira de falar conforme a situação em que estamos (formal ou informal); conforme quem sejam nossos interlocutores (mais jovens ou mais velhos; conhecidos ou desconhecidos); e conforme, ainda, o papel social que estamos exercendo naquele momento (aluno ou professor; chefe ou colega de trabalho). Esses fatos, facilmente percebidos, apontam para uma característica da língua: a língua não é uniforme, homogênea, se materializa portanto, como um conjunto de variedades geográficas, sociais e contextuais.

A língua varia também de grupo social para grupo social. Podendo facilmente perceber, por exemplo, que os mais idosos falam diferentemente dos adolescentes; que uma pessoa do campo fala diferentemente de uma pessoa da cidade; que as mulheres falam diferentemente dos homens, e que pessoas com menor escolaridade falam diferentemente de pessoas com maior escolaridade.

Variamos também o nosso modo de falar conforme a situação em que nos encontramos.

Somos verdadeiros “camaleões lingüísticos”. Por exemplo, a fala será de informalidade e será mais cuidada, mais tensa, mais policiada em situações de formalidade; assim, se na fala informal cortamos normalmente o /-r/ final do infintivo dos verbos (dizemos vou cantá, precisei saí cedo, querem escrevê um novo relatório), nos momentos de formalidade nós voltamos a pronunciá-lo regularmente; o mesmo ocorre com o -s final das formas verbais do nós: na fala informal, dizemos vamo ao cinema hoje, já trabalhamo muito hoje, já escrevemo dois relatórios. Na fala formal, ele tende a ser pronunciado, as situações de informalidade admitem que usemos expressões da gíria sem maiores problemas. Nas situações formais, será raro aparecer gíria. E quando usamos, fazemos as devidas ressalvas, dizendo Como se diz na gíria... Para usar uma expressão da gíria...

A variedade mais cuidada do português culto geralmente se aproxima bastante da chamada variedade padrão (que recebe várias denominações diferentes tais como língua padrão, norma padrão, norma culta). Concordamos com Luft, quando este afirma que:

(...) a escola devia cuidar primariamente da fala dos alunos, único meio de comunicação que a maioria deles terá pela vida toda. Uma adequada terapia da fala (e do pensamento nela expresso), quem sabe, encaminharia uma natural terapia da escrita. (LUFT, 2000, p.64)

A escola privilegia o estudo da Língua Portuguesa como mero objeto de estudo, ditando regras a serem seguidas e fazendo uso do discurso do que é “certo” e do que é “errado”, distanciando-a do contexto em que os alunos vivem, passando-nos uma impressão de que os alunos não possuem conhecimento prévio da língua materna.

Portanto, no que se refere à noção de “erro” em Língua Portuguesa, acreditamos que para aprimorar nosso domínio da língua padrão, precisamos nos livrar da cultura do “erro” e adotar uma postura mais abrangente e positiva frente aos fenômenos lingüísticos, visto que a língua é um conjunto de variedades todas elas igualmente organizadas e funcionalmente adequadas aos grupos que as usam em suas atividades cotidianas. Nesse sentido, ninguém fala (nem pode falar) “errado”. Na medida que todos seguem as GRAMÁTICAS que estão registradas em seus cérebros.

Podemos encarar a gramática universal como o próprio programa genético, o esquema que permite a gama de realizações possíveis que são as línguas humanas possíveis. ... A gramática universal é um sistema geneticamente determinado no estado inicial, e especificado, afinado, estruturado e refinado sob as condições estabelecidas pela experiência, formando as gramáticas específicas que são representadas nos estados estacionários atingidos. Se encararmos desse modo a questão do crescimento da linguagem (“aprendizado da língua”), poderemos entender como é possível uma pessoa saber muito mais do que ela experimentou. (CHOMSKY, 1978, p.175)

Ver a língua como meio pelo qual as pessoas se comunicam, ou seja, a língua a serviço da interação verbal entre as pessoas é necessário para que possamos relacionar os conceitos de gramática internalizada, que representa o conhecimento que nós, seres humanos possuímos do sistema lingüístico ao estudo da gramática ensinada na sala de aula.

Acreditamos, portanto que no ensino de Língua Portuguesa deve-se respeitar primeiro que o aluno tome posse da língua, para que depois ele possa ter consciência desta, pois se deve aguardar o amadurecimento, tanto lingüístico quanto psicológico dos alunos para que eles possam compreender conceitos abstratos. Antes de incutir no aluno a noção de erro, é necessário mostrar-lhe as diversas modalidades da língua quanto ao seu uso. Depois disso, entendemos não será traumatizante apontar os seus desvios em relação à modalidade considerada. Nos exercícios de língua falada ou nos exercícios de língua escrita, o professor poderá mostrar a inconveniência de certos usos, deixando claro que muitas falhas decorrem da interferência do código oral no escrito e vice-versa, e entre os vários níveis que cada código possui.

Às vezes (poderíamos dizer com freqüência?), para bem usar a língua adequando-a à situação e ao intento comunicativo é preciso contrariar a gramática das aulas de português ou pelo menos a visão reducionista, distorcida e preconceituosa de gramática. (TRAVAGLIA, 2000, p.12)

Ao desenvolver o ensino de língua materna e trabalhar especificamente com o ensino da gramática, Travaglia considera conveniente ter em mente que há vários tipos de gramática:

Gramática Normativa, que é aquela que estuda apenas os fatos da língua padrão, da norma culta de uma língua, norma essa que se tornou oficial. Baseia-se, em geral, mais nos fatos da língua escrita e da pouca importância à variedade oral da norma culta, que é vista, conscientemente ou não, como idêntica à escrita (...). Gramática Descritiva é a que descreve e registra para uma determinada variedade da língua em um dado momento de sua existência as unidades e categorias lingüísticas existentes, os tipos de construção possíveis e a função desses elementos, o modo e as condições de uso dos mesmos (...). Gramática Internalizada ou Competência Lingüística Internalizada do Falante é o próprio “mecanismo”, o conjunto de regras que é dominado pelos falantes e que lhe permite o uso normal da língua. Objeto de estudo dos dois tipos de gramática, sobretudo da descritiva. (TRAVAGLIA, 2000, p.30-32)

Acrescenta ainda, que além desses três tipos de gramática, trabalhamos também com outros três tipos cujo critério de proposição está ligado à explicitação da estrutura e do mecanismo de funcionamento da língua são eles:

a) Gramática Implícita, que é a competência lingüística internalizada do falante (incluindo os elementos – unidade, regras e princípio – de todos os níveis de constituição e funcionamento da língua: fonológico, morfológico, sintático, semântico, pragmático e textual-discursivo) e que seria implícita, porque o falante não tem consciência dela, apesar de ela estar em sua “mente” e permitir que ele utilize a língua automaticamente, quando necessita. b) Gramática Explícita ou Teórica é representada por todos os estudos lingüísticos que buscam, por meio de uma língua, explicitar na estrutura, constituição e funcionamento (...). c) Gramática Reflexiva é a gramática em explicitação. Esse conceito se refere mais ao processo do que aos resultados: representa as atividades de observação e reflexão sobre a língua que buscam detectar, levantar unidades, regras e princípios, ou seja, a constituição e funcionamento da língua. (TRAVAGLIA, 2000, p.33)

A aquisição de língua materna é natural aos seres humanos, ela acontece de forma rápida, espontânea e natural, inconscientemente. Se o uso oral da língua materna, em situações do cotidiano, informais, independe da escolarização, o mesmo não pode ser dito em relação aos usos da escrita e da fala em situações formais. Portanto, identifica-se como papel da escola a transmissão da norma de maior prestígio sócio-cultural, a norma culta/padrão, a veiculada nos dicionários e gramáticas e utilizadas na literatura, em jornais e revistas e na redação dos documentos oficiais do país, de modo a serem os alunos capazes de usá-la fluentemente e apropriadamente nas situações que o exigem.

De acordo com Perini (1997), raras pessoas se atrevem a dizer que conhecem a língua, que sabem “gramática”, ou mesmo sabem “português”, isto é privilégio de poucos. Acreditamos que falamos de qualquer jeito, sem regras definidas.

O ensino escolar durante anos fixou-nos a idéia de que não conhecemos a nossa língua, constantes fracassos em redações, exercícios e provas não fizeram nada pra diminuir esse complexo. Temos conhecimento implícito e explícito sobre as coisas. Tudo provém do uso que fazemos a todo instante desse mecanismo maravilhosamente complexo que tem em nossas mentes, e que manipulamos com admirável habilidade. Esse mecanismo é o nosso conhecimento implícito da língua, usado em situações em que a língua padrão é exigida (nos textos escritos, nas falas em público, nos discursos oficiais, provas escolares, etc). Assim sendo, ratificamos que as gramáticas aplicadas ao ensino devem levar em conta que o produto esperado neste contexto é um falante capaz de usar convenientemente a sua língua para se comunicar em qualquer situação. Acreditamos que o sistema gramatical por si só não é capaz de trazer nenhum benefício ao aluno, a menos que lhe seja convenientemente explicado que a Língua Portuguesa (como qualquer outra) tem vários registros e formas que devem ser utilizados em algumas situações e não devem ser utilizados em outras. Luft expõe nesse sentido que:

A verdadeira gramática é um pré-requisito da fala. A verdadeira gramática: sistema de regras que possibilita atos de comunicação verbal. Mesmo para os indivíduos mais ignorantes, mesmo para as crianças pequenas, não há como falar sem teoria gramatical. Quem fala sabe a gramática da língua, por intuição, sem se dar conta, mas sabe. (LUFT, 2000, p.87)

Dessa forma, concordamos com Bagno quando ele fala sobre o ensino e de sua importância para o aprendiz:

Ensinar bem é ensinar para o bem. Ensinar para o bem significa respeitar o conhecimento intuitivo do aluno, valorizar o que ele já sabe do mundo, da vida, reconhecer na língua que ele fala a sua própria identidade como ser humano. Ensinar para o bem é acrescentar e não suprimir, é elevar e não rebaixar a auto-estima do indivíduo. Somente assim, no início de cada ano letivo este indivíduo poderá comemorar a volta às aulas, em vez de lamentar a volta às jaulas. (BAGNO, 1999, p.146)

Assim vemos que para adquirir uma língua ou uma determinada norma de uma língua requer essencialmente que o modelo seja oferecido naturalmente. O objetivo do ensino da língua é dar ferramentas para que os alunos dela possam fazer uso como instrumento de comunicação, isto é, ter a habilidade de saber adequar o seu discurso em relação ao contexto em que se encontram. E ensinar a língua, nesse caminho, é tornar nossos alunos mais conscientes e com uma visão mais crítica do mundo. Vemos que é um trabalho difícil para o professor, para a escola, pois, como esse linguajar mais refinado não faz parte da grande maioria do repertório dos alunos, trata-se praticamente de se ensinar uma segunda língua.

Sabemos que o ato de expressar exige uma elaboração contínua, que, aos poucos, vai – se aperfeiçoando, à medida que se vão esgotando os recursos expressivos mais imediatos. Isso requer um conhecimento profundo da língua, que, por sua vez, se renova a cada enunciação, e ainda, segundo Val:

Quando se tomam como objeto de trabalho em sala de aula os processos de produção e leituras de textos, numa visão integrada dos mecanismos de criação da linguagem, não há mais lugar para um ensino centrado na descrição e prescrição de regras do enunciado, ensino que só cabe ao aluno o reconhecimento passivo e inconseqüente de categorias estanques (as estruturas morfossintáticas analisadas em sala e que nunca aparecem na redação, por exemplo). Pelo contrário, o ensino terá como foco a enunciação, os processos de significação resultantes das relações entre textos e suas condições de produção, e aí caberão ao aluno o uso produtivo dos recursos e possibilidades do sistema lingüístico e a reflexão sobre eles. (VAL, 1992, p.29-30)

Nessa concepção podemos considerar que o português falado apresenta-se, como qualquer língua viva, internamente diferenciado em variedades que divergem de maneira mais ou menos acentuada quanto à pronúncia, à gramática e ao vocabulário. Os usuários da língua, mesmo quando não dominam as formas lingüísticas consideradas “boas” lutam por identificar-se com elas porque sabem que não usá-las em certos contextos implica censura, discriminação e mesmo bloqueio à ascensão social. As regras que governam a produção apropriada dos atos de linguagem levam em conta as relações sociais entre o falante e o ouvinte.

Acreditamos que o ensino de língua materna deveria ser uma forma de complementação do conhecimento de língua que a criança traz de casa e não uma forma de oposição entre duas modalidades lingüísticas, dois modos de se usar a mesma língua de acordo com aquilo que o sistema de língua permite. O ideal do ensino de língua materna é que através deste, todos os alunos que ingressam em uma escola, pública ou privada, em qualquer lugar do Brasil, obtivessem o mesmo grau de domínio da norma culta para que todos saíssem da escola em condições de igualdade e tendo que depender apenas de seu esforço para realizar as suas aspirações. Possenti acredita que:

Uma das medidas para que esse grau de utilização efetiva da língua possa ser atingido é escrever e ler constantemente, inclusive nas próprias aulas de português. Ler e escrever não são tarefas extras que possam ser sugeridas aos alunos como lição de casa e atitude de vida, mas atividades essenciais ao ensino da língua. (POSSENTI, 1997, p.20)

Nessa direção de pensamento podemos salientar que se deve ensinar a modalidade culta da língua lendo, escrevendo, analisando, interpretando, compreendendo e até aprendendo regras gramaticais, não todas, como a escola tradicional fazia, mas aquelas que auxiliem a ler, escrever, analisar, interpretar, compreender textos. As regras gramaticais não podem ser um fim em si mesmas, elas devem ser vistas como um instrumento de reflexão sobre a linguagem, sobre a norma culta e outras normas.

A verdadeira gramática, imanente à linguagem, é algo vivo, por isso flexível, dinâmico. Não assim a Gramática disciplina, código normativo, que tende à fixação e inflexibilidade, portanto à morte. A gramática completa de uma língua viva deveria registrar sua variabilidade e as tendências evolutivas das regras gramaticais. Só línguas mortas são retratáveis num corpus fechado de regras. Portanto, o livro gramática deveria estar sempre sendo revisto e atualizado, como todo bom dicionário. (LUFT, 2000, p.22)

Nesta seqüência, faz-se necessário acrescentar que uma das várias atribuições da escola é ensinar a ler e a escrever. Desenvolver nos alunos a capacidade de transitar pelo mundo da escrita, como leitores e produtores de texto, tem sido, pelo menos em tese, uma das grandes preocupações que orientam os conteúdos da disciplina Língua Portuguesa. A aquisição e o desenvolvimento dessa capacidade envolvem processos de aprendizagem bastante complexos, exigindo, por isso, um investimento permanente no processo de escolarização.

O aprendizado da língua escrita requer não só a apreensão de um código formal (o alfabeto, as convenções ortográficas), mas principalmente, a apropriação de uma multiplicidade de regras sociais que envolvem o uso da linguagem. Em outros termos, não basta a técnica de escrever segundo os padrões formais, é necessário perceber que um sistema de escrita cumpre numa sociedade, inúmeras funções, daí a produção e circulação de tantos textos com diferentes formas.

A cultura da Língua Portuguesa passou por três fases: o ensino gramatical, com a imposição do padrão da classe dominante; a fase dos livros de interpretação, que perdurou até os anos 80; e finalmente, a redação “criativa”, intocável, destituída de regras, dando muito pouca atenção a seus sistematizadores, funcionando e envolvendo à sua maneira, como todas as outras instituições sociais.

A Língua Portuguesa deve ser valorizada e utilizada no campo da contextualização sócio-cultural. O falante deve identificar a língua pátria como uma forma de expressão do próprio eu, uma forma de identidade, além de assimilar as tecnologias da comunicação para saber usá-las da melhor forma possível.

O grande desenvolvimento da sócio-lingüística nas últimas décadas veio propiciar a discussão de alguns níveis de linguagem que até então, eram ignorados ou marginalizados, quando se estudava a Língua Portuguesa. O nível coloquial, representado pelas formas de linguagem usadas na conversação diária, em uma situação de informalidade ou descontração, passou a ser objeto de estudo quando a lingüística contemporânea começou a valorizar a expressão verbal na cultura oral.

As diferentes variedades da língua são utilizadas em situações definidas. Qualquer pessoa modifica sua maneira de falar conforme esteja discutindo no bar com amigos, respondendo a uma entrevista para obter emprego, ou dando uma palestra. A comunicação deve ser vista como um processo de construção de significados em que o sujeito interage socialmente, usando a língua como instrumento que o define como pessoa entre pessoas.

Que unidade lingüística pode haver numa turma de dezenas de alunos vindos de zonas urbanas e rurais, de periferias, de outras cidades? A resposta é simples: NENHUMA.

Para o professor que traz em si a crença da homogeneidade da língua já fará dissipar qualquer interação entre educador e educando. Este logo se sentirá excluído justamente pela língua que começou a aprender desde a sua existência, naturalmente, assim como aprendeu o andar; e é como se lhe cortassem as pernas, cortam a ponte entre seu pensamento e o mundo. Mesmo entre falantes que compartilham um perfil social semelhante, não existe igualdade lingüística devido à interferência das realidades regionais e culturais, bastante diferenciadas e até constantes.

O nosso conhecimento da língua é ao mesmo tempo altamente complexo, incrivelmente exato e extremamente seguro, qualquer falante do português possui um conhecimento implícito altamente elaborado da língua, muito embora não seja capaz de explicitar esse conhecimento. (PERINI, 2002, p.28)

Desse modo afirmamos que existe, no plano da língua escrita, a confusão entre o português falado e a ortografia oficial da Língua Portuguesa. No plano da língua falada, os termos que se confundem ou que são tomados como equivalentes, no senso comum, são português, gramática normativa e norma-padrão. Em relação à língua escrita, seria pedagogicamente proveitoso substituir a noção de erro pela tentativa de acerto, trocar um termo do conteúdo negativo por um termo de conteúdo positivo; afinal, a língua escrita é uma análise da língua falada, e essa análise será feita pelo usuário da escrita no momento de agrupar sua mensagem, em consonância com seu perfil sociolingüístico.

As expressões humanas incorporam todas as linguagens, porém, para efeito didático, a linguagem verbal deverá ser um material de reflexão: sua unidade é o texto compreendido como a fala e o discurso que se produz. Sua função comunicativa torna-se o principal eixo de sua atualização e a razão do ato lingüístico.

Essa concepção destaca a natureza social e interativa da linguagem, em contra posição às concepções tradicionais, deslocadas do uso social. Assim, acreditamos que o trabalho do professor deva centrar-se no objetivo de desenvolvimento e sistematização da linguagem interiorizada pelo aluno, incentivando a verbalização dessa linguagem e o domínio de outras utilizadas em diferentes esferas sociais.

Nos momentos em que a escola toma a língua como assunto sobre o qual se fala, a reflexão sobre os valores sociais e situacionais das variantes lingüísticas deveria alías receber preferência sobre a análise da estrutura. No momento em que o aluno começa a reconhecer sua variedade lingüística como uma variedade entre outras que ele ganha consciência de sua identidade lingüística e se dispõe à observação das variedades que não domina. (POSSENTI, 2001, p.85)

A linguagem pode ser usada para impedir a comunicação de informações para grandes setores da população. Notícias políticas de um Jornal Nacional, podem ser entendidas somente pelos ouvintes já iniciados não só na linguagem padrão, mas também nos conteúdos a ela associados.

No Brasil, a língua-padrão é determinada, só secundariamente, pelo contexto. Sua distribuição é um princípio, associada à classe social. Nessas circunstâncias, muitos brasileiros são silenciados, porque se sentem inseguros no uso de sua própria língua materna.

O objetivo mais geral do ensino de português para todas as séries da escola é mostrar como funciona a linguagem humana e, de modo particular, o português: quais os usos que tem, e como os alunos devem fazer para estenderem ao máximo, ou abrangendo metas específicas, esses usos nas suas modalidades escrita e oral em diferentes situações de vida. (CAGLIARI, 2000, p.28)

Apoiando-nos na explanação de Cagliari, ousamos, portanto afirmar que o professor

português deve ensinar aos alunos o que é uma língua, quais as propriedades e usos que ela realmente tem, qual é o comportamento da sociedade e dos indivíduos com relação aos seus usos lingüísticos, nas mais variadas situações.

A escola contemporânea deve procurar apresentar aos seus alunos uma variedade lingüística, ora mais próxima, ora mais distante dos modelos lingüísticos trazidos na “bagagem” de cada um, enquanto vai realizando um trabalho crescentemente mais complexo e mais de acordo com a norma.

Se o ambiente lingüístico familiar é, por excelência, o lugar da simplificação, da facilitação e da adequação às competências da criança e do jovem, o ambiente lingüístico escolar é o lugar da complexidade, da norma, do conhecimento aprofundado da língua – o objetivo fundamental do ensino da língua materna na escola.

Entendemos ainda, que é na produção de texto que se percebe se o aluno chegou realmente a uma conscientização de como funciona a língua. E é a gramática que traduz tais recursos na escrita. É ela (a gramática) que permite que se conheçam os jogos discursivos da língua. É através da aquisição da competência gramatical que o aluno poderá produzir seus próprios discursos e, ao produzi-los, terá a liberdade de empregar ou não as estruturas lingüísticas de que tomou consciência. Entretanto, é importane salientar que ter consciência das muitas regras gramaticais não vai garantir que , ao produzir seus textos, o aluno será bem sucedido. Aqui é que entra o papel do professor que será o mediador entre o aluno e os possíveis usos da língua. É ele que propicia momentos de reflexão e correção. Sendo assim, ao perceber as lacunas apresentadas pelos alunos, é o professor que proporciona o importante momento da reescrita, direcionando o olhar do aluno para que perceba o texto como um conjunto de partes vinculadas entre si, com laços morfossintáticos que dão-lhe um encadeamento lógico.

Consideramos que a gramática é um meio de leitura de mundo e não um fim em si; seu estudo tem por objetivo apenas conscientizar o aluno de algo que ele, intuitivamente, já sabe.

Márcia Mares
Enviado por Márcia Mares em 04/07/2011
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