Pai

 

Vivi às turras com meu pai. Ele era teimoso, não me obedecia. Eu não gostava que bebesse porque ficava chato, falava bobagens. E porque lhe fazia mal para a saúde.

Uma noite, eu o surpreendi bebendo cachaça. Joguei a garrafa pela janela. Ele ficou furioso, armou-se com a maior faca de ponta da cozinha, e veio para cima de mim. Consegui segurar no alto seu pulso direito com a minha mão esquerda. Com a destra, agarrei seu antebraço canhoto. A faca bateu na lâmpada pendente do teto e ela quebrou. Ficamos ali, no escuro. Devagar fui baixando seu braço e apertando seu pulso, até a faca cair no chão. Dei-lhe as costas e saí. Quando voltei, ele já estava dormindo.

 

Fogo de rastilho:
querias mesmo, meu pai,
ferir o teu filho?

 

Não fossem os seus porres e nossos temperamentos fortes, teríamos sido mais amigos. Mas eu soube filtrar o que ele tinha de bom e seguir seus exemplos melhores. Os seus defeitos tentei evitar. Nem todos eu consegui, porque alguns estão no sangue. Nunca fumei, salvo as subtrações que fiz dos seus maços de cigarros fortes e cigarrilhas cor de chocolate. Coisa de adolescente. Bebo com moderação. Poucas vezes me embriaguei. Foi descuido.

 

A dor que não sai:
hoje eu seria outro filho
e tu, outro pai.

 

Por opção e teimosia, ele vivia sozinho. Meu grande medo era encontrá-lo morto ou agonizando sem assistência, nas minhas visitas de meio de semana e quando levava o churrasco de domingo. Se ele pegava uma gripe, minha angústia era infinita.

Um dia a gripe uniu-se à bronquite crônica para virar pneumonia. Não queria médico. Não arredava pé. Preparei esquema de ambulância e enfermeiros. No hospital, já o esperavam. Iria levá-lo a força. Não foi preciso. No último momento resolveu me obedecer e foi comigo no meu carro. Única vez na vida.

Na cama do hospital suspirou aliviado, como se dissesse: aqui posso morrer, deixo meu filho sossegado. O médico era meu amigo de infância. Tratamento de elite. Primeiro, faxina geral. Em seguida, exames, soro e injeções. De manhã ele chegou, e à noite foi para a UTI. Dois dias depois passou para o outro lado da vida.

Minha angústia foi com ele. Teve uma passagem digna, com o corpo limpo, barba feita e unhas cortadas. Assistência médica total. Acho que não sofreu.

Apesar do gênio difícil e dos vícios, foi um homem de fé. Só não era de templos e igrejas. Mesmo assim, participou da fundação do Centro Espírita Luz Eterna, no nosso bairro. Uma pena ele ter se afastado mais tarde. Contudo conservou até o fim o amor a Deus e ao próximo. E a caridade praticou enquanto pôde.

 

Na fé, eras forte!
Pai, Deus não te abandonou
no instante da morte.

 

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N. do A. – Na ilustração, Ernesto Carlos Hey pescando no Rio Iguaçu em tempos sem poluição. Foto do autor, em janeiro de 1964.

João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 30/03/2012
Reeditado em 18/05/2022
Código do texto: T3584365
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