Haikais - Coletânea

[ Haikais de um domingo já findo ]

I

Oferece aos deuses

o talento de quem foi

- só restou poesia

II

Labirinto de sentidos

amantes, insanos beijos

- loucos varridos

III

Veja, desperta a manhã

longe, antigas cantigas

amei-a num breve afã

IV

No vestido é visível

aquele rubro vestígio

- pulsar do coração

[ Fé e outros bichos ]

I

Missa, compromisso

da alma, do eu submisso

- fé ou nada disso?

II

Reza, alma enlevada

rito sagrado, louvação

- fé ou fim da picada?

III

Noturno lamento

da penitente alma

- fé ou sofrimento?

IV

Pureza da alma

acreditar, ter esperança

- fé ou insegurança?

V

O homem bom

sofre muito, muito mais

- fé ou fé demais?

[ Estrelas e esperas ]

I

No seu corpo,

brilho na madrugada

- Vênus, sou eu

II

Aguardo seu sim

dizendo assim

- vem, vem pra mim

III

Estilhaços dos sóis

explodiram em nós

- maculados lençóis

IV

Longa espera

você vem na véspera

- Vésper, é você?

V

Travesseiro transfigurado

no meio, colchas, edredom

- solidão, resultado

VI

Aliança dada em trovas

agora é moeda de troca

- e não levo nem troco

[ Haikais sem medidas, mesmo ]

I

Gestos gastos

doces abraços, gostos

- beijos nos rostos

II

Ternura cadente

estrela fortuita

- amor aparente

III

Chacina no morro

pedido de socorro

- morro ou corro?

IV

Tiros a esmo

certeiros acertos

- eu, eu mesmo?

V

Falastrão fulgura

no planalto, na secura

- lei da rapadura

VI

Alguém lá, eu aqui

ele, charuto cubano

eu, nem cinza

[ Caipirices e moda de viola ]

I

Som de viola

alma de poeta

- simplicidade

II

Canta o sabiá

pinho responde

- festa no arraiá

III

Tem pinga, pinhão

quentão, cantoria

- festa de São João

IV

Caipirinha embriaga

solitário coração

- bêbado de amor

V

Flor do sertão

rubra de paixão

- seu nome é Rosa

VI

Sonora viola

pinho em desafio

- canta mais, fio

[ Beijos e sabores ]

I

Beijo de guri

sabor de caqui

- inocência

II

Beijo de menina

sabor tangerina

- desejo

III

Beijo da amada

sabor marmelada

- infidelidade

IV

Beijo de irmã

sabor de romã

- amizade

V

Beijo da viúva

sabor de uva

- saudade

[ Teatralidades ]

I

Quem do ator

conhece o drama

- a própria cama

II

Obra imortal

espetáculo teatral

- aplausos, afinal

III

No fim do ato

o riso é um gozo

- cai o pano

IV

Atrás da cortina

sofre e sorri a menina

- vida de atriz

V

Adrenalina

inspira purpurina

- salta bailarina

VI

Texto no palco

fala o coração

- pura emoção

[ Haikais da sexta-feira - II ]

I

Brilho, estrela cai

feito colírio no olhar

- vira haikai

II

Saudosa e fria

Curitiba grita e cala

- poeta não fala

III

Pastel chinês

caipirinha de alecrim

- polaco mandarim

[ Haikais da quinta ]

I

Hoje o canto

seria mais feliz

- cadê Elis?

II

Brilho fugaz

no branco espelho

- fim da voz

III

Canto do mais

fundo desassossego

- viagem

IV

Amor encantado

versos dolentes

- sufoco

[ Haikais sem medidas ]

I

Grilo faz dueto

com minha insônia

- encanto noturno

II

Menino sua com

suas amassadas laranjas

- malabares no farol

III

Nenhuma dor

do ator dói à toa

- alma dorida

IV

Sorri amarelo

o gato na janela

- jarro quebrado

[ Haikais da sexta-feira ]

I

Dedo ágil

alegra uma alma

frágil

II

O pecado

mora ao lado

- fica de quatro

III

Véu da noiva

esconde incontida

melancolia

IV

Fruta podre

não adoça nem a

boca do pobre

V

Tempero de

minhas tristezas

- seus ais

VI

Vem o vento

fustigar o mar

- vendaval

VII

Ofende mais

quem na boca

nada cala

VIII

Deu um nó na

saudade ao ajeitar

a gravata

IX

Humilhado

é o gato quando

cai do telhado

X

Rio que afoga,

minha alma não

naufraga

XI

Imensidão

do mar, neste azul

- seu olhar

XII

Chorar lágrimas

tardias e vãs

- amanhã

[ Haikairuiz, para uma delicada Alice ]

I

Leite materno

eu imaginando

ser eterno

II

Amor e poesia

nas mãos da mãe

- sopa de letras

III

Nasci na praia

a primeira rima

veio com a brisa

IV

Lua cheia

me trouxe você

- feliz manhã

[ Haikais curitibanos ]

I

Reflete a garça

no olho do sapo

- mergulho

II

Capivara sem

nada fazer, nada

- instinto

III

Pinheiro em flor

cantoria de sabiás

- lá vem pinhão

[ Tercetos com música ]

I

Flauta e violino.

dueto perfeito para o

amor de um menino.

II

Lágrima aflora.

Na música lá fora

uma alma chora

III

Sax tenor.

O ouvido gosta, o coração

sente dor.

[ Tercetos com cor ou luz ]

I

O olho cego de

esperança enxergou

só o medo da luz

II

O olho azul da

saudade fez cair lágrima

verde de esperança

III

O sorriso amarelo

deixou o rosto todo

vermelho

IV

No vidro de rótulo

azul, remédio contra

a febre amarela

[ Tercetos com Sensualidade ]

I

Gula. Ensandecida, louca.

Ela engoliu-me todo com

sua faminta boca.

II

Não é condenável

a mulher que sabe unir

o útero ao agradável.

III

É devassa essa mulher que

seus sonhos expõe quando

abre a vidra?

IV

Ninfomaníaca.

Sua demoníaca mania me

levou do céu ao inferno.

[ Haikais do livro “Trinta Toques” ]

I

Almas gêmeas.

A minha geme e a

outra não se acalma

II

No retrato antigo

vi meu pai jovem e

eu, envelhecido

III

Há algo no sushi

mais sutil que a

alga: a alma

IV

Flauta e violino.

Dueto perfeito para o

amor de um menino

V

Bashô baixou no

poeta do Axé.

Arigatô, Oxumaré

VI

Somos retas paralelas.

Amor possível de se

encontrar no infinito

VII

Suor noturno faz nascer

uma flor que você plantou

dentro de mim: delírio

VIII

Encontro fugaz.

Neblina abraça o velho

lampião de gás

IX

Obsessão.

Beber o vinho amargo

desta intragável paixão

X

Absorto no dia-a-dia

nem percebí que o aborto

veio em forma de poesia

[ Quatro Haikais ]

I

Quisera neste prato

não deixar quireras

- fome de amor

II

Rio sem peixe

vive a garça a

engolir sapos

III

Correnteza leva

uma leva de

incertezas

IV

Um pato num

prato, intacto

- natureza morta

[ Haikais sobre temas ]

Os sabiás de Curitiba que alegram as calçadas

I

Tico-tico no fubá

espalha quireras

- sabiá vem cantar.

II

Sabiá no Paraná

encanta sem parar

- tico-tico no fubá

Sinos, ventos e desencontros

III

Sino que soa

ao entardecer assinala

a sina do envelhecer

IV

Vento sopra para

o norte, minha sorte é que

sopra sobre mim

V

O sino toca

perto de mim

- ora por nós

VI

Na ventania

soa o sino distante

- pecados de mim

VII

Pelo sim, pelo não

este sino toca fundo

no meu coração

VIII

Silêncio da noite

o vento forte despertou

- alvorada

IX

Meus pecados são

pedaços de mim

- risos e sinos

X

Faça do sopro no

pescoço um arrasador

furacão

XI

Noite de ventania

em minhas janelas

- melancolia

XII

Escrever e criar,

ventania e janela

- basta abrir

XIII

Ventos e pesadelos

mais assustam no frio

- madrugadas

Rogério Viana
Enviado por Rogério Viana em 04/04/2005
Código do texto: T9596