O voô do Pardal

Enfim, agora você pode! Está livre do seu silêncio angustiante, dos nossos cuidados excessivos que o sufocavam, das fraldas, das refeições insossas, das dores físicas e das outras, as aflitivas, aquelas que às vezes o levavam ao choro ante nossas manifestações de carinho.

Está livre de ter que nos bater para que entendêssemos que não era naquela posição que gostaria de ficar, daquele tipo de cuidado que necessitava naquele instante. Ou de ter que atirar longe o copo de chá para que compreendêssemos que aquilo não o apetecia.

Está livre do banho, a hora do terror, e daquelas mulheres tagarelas esfregando suas partes íntimas sem o menor pudor. Livre das gotas que o induziam ao sono, das pílulas de gosto amargo misturadas à sobremesa, do constrangimento de ter-se tornado, sem que lhe pedissem permissão, um mero objeto de exposição para olhares penalizados.

Está livre do programa de televisão imposto, da cadeira escolhida à revelia, dos passeios sobre rodas ainda que não desejados. Livre das companhias quando preferiria estar só, do sono forçado quando não o tinha, da alimentação imposta quando inapetente.

Agora você pode. Pode encontrar nosso cãozinho que se perdeu no campo, a tartaruga que fugiu pelo quintal, ou o louva-a-deus que alimentava no galho da roseira. Pode falar italiano com seus pais – aliás, pode falar, porque, diferentemente daqui, será entendido mesmo que sem palavras. Poderá rever seus irmãos queridos, os mais velhos que há tempos se foram e os mais novos aos quais você sobreviveu. E distribuir a todos seu simpático sorriso, sem se preocupar com a falta de dentes, pois em sua nova morada não haverá necessidade deles para que seu sorriso possa iluminar tudo em volta: ele será sentido, não necessariamente visto.

Enfim... Agora você pode, com sua habilidade recuperada, criar um chaveiro bonito para São Pedro, dar uma mãozinha na carpintaria de São José ou auxiliar São Francisco a cuidar dos animais. Mas tenho certeza de que sua primeira providência, ao chegar aos portões do Paraíso, será dar um jeito naquelas dobradiças que provavelmente há séculos andam rangendo.

Porque, a partir de agora, a manutenção do Paraíso está garantida em suas hábeis mãos!

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Obs.: O apelido de meu pai junto a seus colegas de trabalho era “Professor Pardal” – para quem não conhece, foi um personagem criado em 1952 para a Walt Disney Company (segundo a Wikipédia). Era um galo inventor cheio de boas intenções, morador de Patópolis, que criava máquinas mirabolantes e sempre conseguia dar um jeitinho em tudo. Nos quadrinhos, aparecia com o Pato Donald e sua turma inventando apetrechos e auxiliando a combater os vilões, como os Irmãos Metralha e o Professor Gavião. Meu irmão, que tantas vezes o acompanhou em suas reinações, era apelidado de Lampadinha, o robozinho auxiliar do inventor...

O Professor Pardal a que me refiro faleceu neste dia 4/1/2009, depois de mais de nove anos sobrevivendo às seqüelas de uma isquemia que parcialmente o incapacitou. A ele deixo esta pequena homenagem, minha admiração e meu amor incondicional.