Uma Era Em Dois Atos: Primeira Parte
Primeiro Ato: "A Saucerful of Secrets"
Local: subúrbio de Londres, um campo de futebol
Data e Hora: uma noite de julho de 1970 (ou seria 69?)
É uma noite de verão londrino, sem nuvens, noite negra sem luar. É cedo ainda, 8 da noite, muita gente sai das casas em busca de diversão no centro da cidade. Mas alguns, ao contrário, se dirigem - sós ou em pequenos grupos - ao subúrbio. Eles são jovens, na maioria universitários ou desistentes do curso superior, quase todos ostentam cabelos longos, calça boca-de-sino, camiseta colante... é a moda. Em silêncio eles aparecem uns após outros no campo de futebol sem iluminação... Mas, há iluminação junto ao gol num lado do campo: é um pequeno palco improvisado onde se vê vultos indo e vindo trazendo pesado material. Em cada canto do campo, emergem fantasmagóricas caixas pretas colocadas sobre pedestais.
O tempo passa marcando rastros de pequenas poeiras estelares piscando débeis na abóbada negra. A multidão... nem é multidão, apenas um punhado de hippies, talvez cem, ou duzentos? A falta de luz impede aos presentes saberem quantos já chegaram.
De repente, os primeiros acordes distorcidos de uma guitarra elétrica rasga o silêncio do campo... Em resposta, os presentes uivam, aplaudem e assobiam, mas logo emudecem espantados de se verem completamente envolvidos pelo som que os assalta de todos os lados. É a primeira experiência quadrifônica desses inventores que agora no palco entram em transe. Transe que contagia a todos que aí estão...
Quatro jovens iguais aos espectadores estão no palco, e tocam os seus intrumentos: uma guitarra, um baixo, um teclado e bateria. O estranho desse grupo é que eles tocam estáticos (alguém já viu um grupo de roqueiros tocar sem mexer o corpo???!!!) Mas o som... AH! O SOM!!! Que fantástica seqüência de acordes, melodiosos ou furiosos... dementes ou angelicais, hipnotizando a quem aí está... Estão?...
A noite afunda na inconsciência... os presentes esquecem que eles existem... só a música tem existência ali... nem o céu nem a terra, nem mesmo os póprios músicos parecem ter existência própria mas são tão somente extensão das notas que saem dos seus instrumentos.
Até que um elemento da natureza resolve se rebelar e se tornar perceptível; é a brisa que refresca o rosto e acarinha o cabelo. A brisa fazia parte desse grupo? Ela entrou no palco no momento exato quando a bateria frenética cedia o ritmo ao som surreal do órgão, docemente pautado pelo baixo. A guitarra fez coro ao órgão e aos poucos tomou a frente da melodia... Então, a brisa brincou com os cabelos do jovem guitarrista quando ele se aproximou do microfone e, pela primeira vez naquela noite, se ouviu a voz humana saindo das caixas acústicas... Mas, espera! essa voz é humana?! Não há palavras na voz que ecoa na noite...! A brisa parece irritada, sopra mais forte e despenteia o jovem que solta a voz irreal... e silenciosamente desaparece ao mesmo tempo em que a música cessa.
Os espectadores parecem demorar a perceber que o concerto acabara... Os primeiros aplausos se fazem ouvir tímidos e como que sonolentos minutos após os músicos se livrarem dos seus instrumentos e, em pé diante dos espectadores, esperam pela reação... E essa reação foi como um imenso suspiro de desalento. Porque o show acabou, a êxtase de ouvir uma obra prima acabou... é hora de despertar para a fria noite londrina e voltar para casa, para a realidade dos anos 70.