Nunca torci por time de futebol, sempre fui Brasil e mesmo assim mal acompanhei as Copas do Mundo. Escola de samba gostava de todas. Mas os tecidos, adereções, brilhos e brocados sempre estiveram presentes em minha vida, desde menina desenhando, colando, escrevendo, pintando até conseguir levar a sério e assumi que queria ser artista. Mas isto foi há muito tempo, tive o privilégio de assistir algumas aulas com Rosa Magalhães e tantos outros professores maravilhosos, Fernando Pamplona era o diretor de um paraíso chamado E.B.A. Um prédio perdido na ilha do Fundão, com muitos jovens talentosos, que assustavam um pouco os outros blocos pela originalidade, mas no conjunto dava o maior orgulho estudar lá.
O sonho de todo aluno do meu curso, indumentária e cenografia era conhecer um barracão de uma escola de samba em pleno vapor. Eu queria desesperadamente ver a montagem de um carro alegórico, não qualquer um, tinha que ser do Joãozinho Trinta, verdadeira obsessão cultivada anos a fio.
Um dia tomei coragem e saí de casa às cinco da manhã sozinha, fui para a Presidente Vargas e andei bem devagarinho, devorando os detalhes de cada criação de João. Nunca vou esquecer o momento mágico em que me deparei com aquelas estruturas gigantescas, luxuosas, feitas para hipnotizar o povo. Fiquei ali parada, viajando no que a imaginação daquele homem foi capaz, e soube que ele era único e um artista acima de qualquer conceito.
O simbolismo estava presente nos detalhes, mas qualquer um conseguia compreender. Era fascinante e ao mesmo tempo imponente e assustador: ali estava uma obra que iria encantar o mundo por um tempo determinado e depois não importava o fim que fosse levar. Carnaval é assim, a gente guarda na memória e no coração, não coloca na parede nem vira peça de museu. Infelizmente.
Naquele dia muita coisa mudou, entendi que a vida é transitória e que o tempo é um aliado e não uma justificativa. Fui viver meu segundo sonho de voar pela VARIG e levei o curso como pude até onde deu. Fiz muitas aulas de jaleco por cima do uniforme, mala pronta no fusquinha, correndo contra o tempo para não perder a hora da apresentação dos voos. E criar exige tempo e dedicação, não dá ter pressa com arte.
Quando não pude mais conciliar, sacrifiquei o sonho e caí na batalha, mas fui a todos os museus, exposições, eventos que pude durantes minhas folgas nos pernoites. Passei tardes e manhãs inteiras vendo a felicidade aos bocadinhos e tentando absorver o máximo, aproveitei cada minuto e chance.
Troquei muitas compras por galerias, feiras e não me arrependo. Eram muitas informações que fui arquivando e assim fui vivendo tanto no exterior quanto no Brasil sempre havia o que ver, aprender e experimentar.
Ouvi tantas histórias que ouso pensar que vivi muito mais que me dei conta. Tanto que só agora passados anos e anos me peguei cheia de vontade de pegar um avião e sair por aí sem rumo, revendo cada lugar só para matar a saudade. Engraçado que quando era mais jovem só pensava nos voos para o exterior, depois de algum tempo fazendo rota nacional nem queria ouvir falar em Nordeste. Só que hoje sinto tanta falta do meu Brasil.
Sei que é uma bobagem, mas as aguas mornas do mar de Recife eram uma delícia e com o calor que está fazendo me deu uma vontade louca de sentir aquele aconchego. E depois de uma praia, nada melhor que uma moqueca de siri catado feita pela Naná, delicia que comia suspirando no restaurante pequenininho no Pelourinho. Foi lá que escutei uma batida que mexeu com meu coração, me deixou com vontade de saber dançar só para acompanhar aquele som, o toque do Olodum é de virar a cabeça e me conquistou de imediato.
E tinha aquele cheiro exótico que envolvia Manaus... um aroma de floresta que não sei explicar . Assim como o pirarucu, as frutas exóticas e o rio que parecia não ter fim. Os índios, árvores, bichos, lendas e Parintins. Descobrir o Brasil é tarefa para a vida inteira, cada vez é diferente, cada dia tem uma novidade, é uma terra que se recicla e não tem como não querer ver sempre mais e mais.
Houve dias em que partilhando o eterno burburinho do mercado do Ver o peso de Belém, fuxicando as barracas e jogando conversa fora, ouvi e vi coisas que jamais imaginei existir. Assisti barcos retornando de um dia de pesca no Amazonas, trazendo na rede mais mistérios que peixes. Gente simples, falando da vida e contando casos, descrevendo ervas que servem para curar dor de barriga e outras para amansar marido brabo.
Ruas, praças, becos e ladeiras. Lá estava Imperatriz com sua beleza natural, frutos exuberantes e gente de sorriso fácil. E meu xodó: São Luís do Maranhão, que este ano completará 400 anos no dia 8 de setembro e é o enredo da Beija Flor de Nilópolis, que também homenageará Joãozinho Trinta . Sou fascinada pelo Maranhão por vários motivos e para explicar seria preciso descrever colonização, lendas, influências, geografia, cultura e o objetivo não é esse.
Aquela cidade tem magia, é um lugar misterioso, cercado de lendas que cortam o tempo e ainda amedrontam. Existe uma forte influência afro-indígena na religião, folclore e costumes. Além do português perfeito que falam, amam a poesia e literatura.
Fui ver a apresentação da sinopse na quadra da Beija Flor, foi uma festa linda em que saí convicta que a escola tinha nas mãos um tesouro e sabia disto.
Dali em diante acompanhei várias etapas, veio a escolha do samba enredo e gostei dos dois finalistas assim que ouvi pela primeira vez, gostei tanto que acabei decorando os dois. Quando houve a junção, no começo não compreendi muito bem, mas depois foi a melhor composição, pegaram os versos mais fortes e de mais apelo e transformaram em um único.
Esta jogada de mestre, ousada e corajosa porque as torcidas estavam bem distintas, me convenceu: não iria apenas acompanhar, queria conhecer melhor e saber um pouco mais sobre a escola.
E foi assim que retornei à quadra da escola, era um sábado morno e de repente a porta bandeira entrou tranquilamente e cumprimentou quase todas as pessoas presentes tratando-as pelo nome. Assisti a apresentação das crianças que ela prepara para assumir o posto de mestre sala e porta bandeira fantasiados e felizes, a dança faz parte de um projeto muito maior, soube depois. Meninas que minutos atrás corriam pela quadra, apresentaram coreografias em conjunto e haviam muitos pais tirando fotos e incentivando. Selminha Sorriso com simplicidade, delicadeza e carisma mudando o destino de tantas crianças que poderiam estar nas ruas naquele momento, mas estavam ensaiando, brincando, fazendo parte de alguma coisa importante para eles, fazia a diferença.
O problema é que quando não somos parte de nada, estamos sozinhos e o mundo nos engole. É quando perdemos nossas crianças, para a vida errada e sem rumo. Achei muito bonita a iniciativa de buscar a solução dentro da própria comunidade, usando a arte como incentivo.
A conquista derradeira aconteceu no ensaio técnico debaixo de um temporal, após oito anos sem pisar na avenida Marques de Sapucaí. Encarei as aguas e fui assistir o esboço do que seria o desfile. Embora digam que é uma pessoa muito exigente e algumas vezes discordem de suas opiniões, há algum tempo também admiro e respeito o trabalho do Laíla. Acho que é determinado e muito seguro, requisitos essenciais para quem exerce a liderança.
Naquela noite ele fez um discurso para a escola prestes a entrar na avenida e achei a colocação perfeita, incentivou e fez com que eles se sentissem confiantes e o resultado foi um ensaio técnico lindo e emocionante. Deu para sentir o capricho, o povo cantando com garra, as coreografias bem ensaiadas e tudo muito bem feito.
Esta semana vi um carro lindíssimo, as fotos do teste de som e todas as alas fantasiadas, demonstrando uma preocupação tanto com o público que foi assistir como com quem estava desfilando. Se a pessoa vai usar máscara, adereço de mão, chapéu, precisa treinar e nada mais justo que fazer isto nas duas ocasiões conquistadas através do título de campeã de 2011.
O que achei estranho foi este recurso que deve ter feito a festa de tantos que não podem pagar para assistir o desfile oficial, não ter tido o destaque merecido, contudo tenho certeza que se houve tanto empenho em um teste, imagino como São Luís do Maranhão virá retratada no domingo. Se antes não sabia nada, hoje o pouco que sei é baseado em admiração, muito respeito por uma escola que sabe trabalhar em conjunto, tem garra e determinação e vai mostrar exatamente o que eu, que amo o Maranhão quero assistir: O melhor!
Joãozinho Trinta foi um visionário que mostrou ao mundo que não existe limitações quando nos dão recursos e permitem voar. A Beija Flor com seus artistas geniais, vai encantar a passarela do samba com o inusitado, os carros alegóricos são de um realismo impressionante. O que representa o navio negreiro tinha a lateral formada por corpos contorcidos dos escravos, milhares de rostos expressando dor e agonia: todos diferentes.
De tão perfeito pareciam reais e chegavam a provocar forte emoção, várias pessoas que passavam comentavam a mesma coisa. Saí dali pronta para ver o conjunto completo. A alma leve, lembrando que o mestre Joãozinho havia dito um dia: o povo quer ver luxo, o ano inteiro eles dão duro e no carnaval podem ser reis e rainhas. Que sejam!
Mas de todas as tiradas geniais, a melhor sem sombra de dúvida é que se somos capazes de fazer o maior carnaval do mundo, somos capazes de qualquer coisa. E é a mais pura verdade. Hoje tenho uma escola para torcer, e foi uma decisão pautada em muita empatia e seriedade.