MEU FUSCA, MINHA ARCA DE NOÉ!

Caía uma tremenda chuva em São Paulo, lá pelas tantas da noite, eu muito preocupada, pois deveria voltar pra casa dirigindo meu fusquinha. Estava ali nas redondezas da Rebouças e já imaginava a Avenida Pacaembu e as marginais todas inundadas e tendo que ficar ilhada do lado de cá da ponte.

Não deu outra: assim que desci a Pacaembu, já visualizei alguns pontos de alagamentos, que consegui passar sem problemas. Entretanto, quando cheguei na Avenida Marques de São Vicente, antes da entrada da ponte do Limão, o trânsito estava todo parado, com motoristas do lado de fora do carros conversando.

Impaciente do jeito que sou, não queria ficar parada ali a noite toda. E sem falar que, na época, há uns bons 20 anos atrás, não tendo o tal do celular, não tinha como avisar em casa do atraso e meus pais já deviam estar desesperados. Fiz uma manobra "espetacular" e impensada, ao meu ver. Subi na ilha divisória da avenida pra voltar pela contramão.

Assim sendo, com o fusquinha na diagonal, uma roda por vez, passei para o outro lado, e como não havia tráfico na contramão, voltei até a Avenida Rudge para tentar atravessar a próxima ponte, a da Casa Verde. Adivinhem? Um grande lago separava eu e meu fusquinha e a ponte que me levaria até em casa.

Lembrei do que meu namorado na época já havia me alertado e me aconselhado, dizia ele que se acontecesse de eu ficar ilhada numa chuvarada como aquela, o melhor era esperar a água baixar. Contudo, eu também já havia escutado que o fusca era duro na queda, pois tendo o seu motor na traseira, ficava mais difícil de morrer no meio d'água. E tinha mais: para fazer uma travessia no meio de alagamentos era só necessário puxar um pouco o breque de mão e botar na marcha mais forte, a primeira, que ele, o fusca, aguentava o sopapo.

O dilúvio continuava sem dar sinal de que ia passar logo. Naquele momento eu, um pouco atordoada com estes pensamentos, pendia entre esperar a água retroceder e ir em frente e esperar que o fusquinha não me deixasse na mão. E mais uma vez, a minha impaciência bateu e, ainda complementada pela sagitariana típica que sou, adorando um novo desafio, resolvi atravessar aquele obstáculo aquático que me impedia de chegar ao lar doce lar.

Assim sendo, respirei fundo, fiz todo procedimento de que me lembrava, rezei um sem número de Aves Maria, fechei os olhos e pisei no acelerador. O coitado do fusca ia que ia patinando e no meio do percurso até senti que boiava um pouco, que os pneus não tocavam mais o chão, mas não esmoreci. Foram os minutos mais longos da minha vida pra percorrer a distância de mais ou menos dez metros de água e barro. E durante esta minha saga, via pelo retrovisor um pessoal torcendo e gritando "vai, pisa firme".

Num dado momento escutei o motor engasgando e meu coração veio até a garganta de medo de parar no meio daquele aguaceiro, mas o fusca só estava tomando um fôlego pra continuar naquela sua missão.

E finalmente, após toda a agonia, senti o chão mais firme da ponte da Casa Verde e o fusquinha se aprumando em direção à Avenida Braz Leme. Sem antes ouvir os aplausos dos mais prudentes, que ficaram pra trás esperando a água baixar.

Logo cheguei em casa, para o alívio de meus pais, com o fusquinha cheirando a queimado, pelo esforço que fiz o coitado passar, mas lógico, não contei nada das agruras que precisei fazer pra chegar sã e salva. A partir daquele dia batizei meu Fusca de "Arca de Noé" pois só Deus sabe do que um Fusca é capaz.