Dia 9 de junho, sexta-feira, Ivan Lessa publicou sua última crônica. .Morreu ontem em Londres, onde morava desde 1978 . Filho do escritor Orígenes Lessa, Ivan foi um escritor indispensável e oportuno para toda uma geração que tem a capacidade de indignar-se. Juntamente com Paulo Francis, Millôr Fernandes, Ziraldo, Jaguar ... teceu o fio da nossa história durante os anos de chumbo, numa quixotesca luta por dignidade, justiça e cidadania. Agradecemos o testemunho da sua vida. Eis sua última crônica.
IVAN LESSA

Orlando Porto. Taí um nome como outro qualquer. Podia ser corretor de imóveis, deputado, ministro, farmacêutico. Mas não é. Trata-se de um anagrama de um escritor francês - e ator e ilustrador bom e autor e figurinha difícil francesa e aquilo que se poderia chamar de "frasista". Feio como um demônio, no meio da década de 50 cansei de dar com ele dando comigo lá pelo Boulevard St. Germain, cheretando o Flore, o Lipp, fazia uma cara que quem ia dizer algo importante e logo sumia na companhia do Jean-Pierre Léaud, aquele maluquinho dos filmes autobiográficos do Truffaut. Dupla estranha. Os desenhos do -esse seu nome, artístico ou de batismo, Roland Topor- eram bacaninhas. Mas sempre foi Orlando Porto para mim. Fez cinema também. O Inquilino do Polanski, o Reinfeld de Nosferatu, do Werner Herzog. Até que bateu o que ocultava seus pés: umas botas estranhas como ele. De vez em quando, numa revista esotérica, dou com ele. Ei-lo numa em inglês com "100 boas frases para eu matar agorinha mesmo". Se chegou ao fim, e chegou, foi pelo cachê. Meros galicismos literários. E aí trago à cena, mais uma vez, porque cismei, mestre Millôr Fernandes. Esse era profissional. Nada a ver com "frasista". Trabalhava com a enxada dura da língua. Nunca para dar a cara no Flore, principalmente com Topor e Léaud. Reli umas 100 frases do Orlando, ou Topor, e não resisti à tentação de, em algumas delas dar-lhes uma ginga por cima e outra por baixo, à maneira do frescobol querido do mestre, só para exercitar os músculos muito fora de forma. Cem razões: Faço por bem menos, mas mais Copacabana e Leblon. Algumas raquetadas minhas em homenagem ao mestre cuja falta continuo sentindo: - Melhor maneira de verificar, antes, se já não estou morto. - Mas não se mata cavalos e malfeitores? - Pelo menos eu driblaria o câncer. - Milênio algum jamais me assustará. - Apanhei-te horóscopo! Pura enganação! - Levo comigo a reputação de meu terapeuta. - Pronto, agora não voto mais mesmo! Chegou! - Aí está: uma cura definitiva para a calvície. - Enfim cavaleiro do reino de sei lá o quê. - A vida está pelos olhos da cara. Pra morte eles fazem um precinho especial, combinado? - Enfim, ano bissexto nunca mais. Esses ficam para o Jaguar. O resto pro Ziraldo. - Ao menos é uma boca de menos a sustentar. - Só quero ver quanta gente vai sincera no meu funeral. - Pronto! Inaugurei estilo novo: Arte Morta. - Sabe que minha vida não daria um filme. O livro eu já escrevi. Deixem o desgraçado em paz, peço-lhes. - Custou, mas estou acima de qualquer lei que vocês bolarem aí. - Levou tempo, mas cortei enfim meu cordão umbilical. - Roncar, nunca mais. Nem eu nem ninguém ao meu lado. - Que desperdício nunca ter fumado em minha vida! - Consegui preservar o mistério sempre giarando em meu torno. - Maioria silenciosa? Essa agora é comigo. - Na verdade, nunca me senti à vontade nessa posição incômoda de cidadão do mundo. - Ei, juventude, pode vir que pelo menos uma vaga está aberta. - Emagrecer é isso aqui. - Agora é conferir se, do outro lado, sobraram tantas virgens assim. E assim, cada vez que um "frasista" passar por perto de mim, leve uma nossa: minha e de Millôr. Dois contra um a gente ganha mole.