A visão budista da morte e histórico de vida do meu avô

Este momento tão solene em que realizamos com toda nossa estima a Cerimônia de 7º dia de falecimento do Sr. Kiyoto Fuchigami, meu 'jichan', nos remete a uma reflexão acerca da morte. O Budismo Nitiren nos conforta e nos ensina a ver a morte como algo muito natural e por meio desta compreensão, aliviamos nossa tristeza pela saudade.

Acabamos de oferecer incenso ao adentrar na recitação do trecho Jigaguê da liturgia, que é uma parte do Capítulo Juryo do Sutra de Lótus, cuja tradução é “Revelação da Vida Eterna do Buda”, o mais importante e profundo ensino transmitido desde o surgimento do budismo milenar. Este oferecimento então representa a nossa reverência à eternidade da vida do Sr. Kiyoto Fuchigami.

O próprio buda fundador, Nitiren Daishonin, explanou sobre a morte em uma carta intitulada “A herança da Lei Última da vida”:

“Myo” [de Myoho-rengue-kyo] representa a morte e “ho”, a

vida. A vida e a morte são as duas fases passadas pelas

entidades dos Dez Mundos, as entidades de todos os seres

sensíveis que incorporam a lei de causa e efeito (rengue).

A lei da simultaneidade de causa e efeito está claramente

em ação em tudo que vive e morre.

Nenhum fenômeno — Céu ou Terra, Yin ou Yang, o Sol ou a

Lua, os cinco planetas, ou quaisquer condições de vida do

Inferno ao estado de Buda — estão livres do nascimento e

da morte. Assim, a vida e a morte de todos os fenômenos

são simplesmente as duas fases do Myoho-rengue-kyo.

Para a pessoa que tem fé e recita o Nam-myoho-rengue-

kyo com a profunda visão de que este é o último momento

de sua vida, o sutra proclama: “Após sua morte, mil budas

estenderão suas mãos para livrá-lo de todo o medo e

impedirão de deixá-lo cair nos maus caminhos.” Como

podemos conter nossas lágrimas na inexprimível alegria de

saber que não somente um ou dois, nem somente uma ou

duas centenas, mas mil budas virão nos saudar com seus

braços abertos?

Como vemos nessas palavras do buda, nossas lágrimas devem ser somente de alegria e tranquilidade. Podemos interpretar esses “mil budas que estenderão suas mãos para livrá-lo de todo o medo” como os companheiros que se reúnem por ocasião do funeral para orar em memória do falecido. E de fato, quanto mais querida é a pessoa, mais familiares e amigos se reúnem em consideração.

Em outro escrito, Nitiren Daishonin afirmou:

"Continue sua prática sem recair até o último momento de sua vida e, quando a hora chegar, observe! Quando escalar a montanha da perfeita iluminação e olhar ao seu redor em todas as direções, para sua surpresa você verá que todo o mundo dos fenômenos é a Terra da Luz Tranquila. O chão será de lápis-lazúli e os oito caminhos serão separados por fios dourados. Cairão dos céus os quatro tipos de flores e a música ressoará no ar. Todos os budas e bodhisattvas estarão presentes em total alegria, acariciados pelas brisas da eternidade, da felicidade, da verdadeira identidade e da pureza. Está chegando rapidamente o momento em que nós também estaremos entre eles." (WND, pág. 761.)

Desta forma que ele descreve, de fato, a morte parece algo muito bonito. Mas não significa que a gente precisa apressar o nosso momento não...

O nosso mestre, presidente Daisaku Ikeda, assim nos encoraja: "O mais importante para nós que estamos vivos neste momento é vivermos com esperança e nos empenharmos para sermos felizes. Em relação à unicidade da vida e da morte, ao alcançarmos a felicidade poderemos enviar ondas de boa sorte às pessoas que faleceram; a nossa felicidade também servirá como uma prova de que elas atingiram o estado de Buda. Por outro lado, se nos permitirmos sermos dominados pela aflição, os falecidos também sentirão esse sofrimento, uma vez que estamos sempre juntos e somos inseparáveis." (BS Nº 1315, 08/04/1995, p.3)

A vida do 'jichan' Kiyoto foi bastante incomum. Cumprindo dignamente uma existência de 89 anos, viveu sua juventude em um período da história mundial caracterizado por desafios e turbulências.

Nascido no Japão, no dia 24 de maio de 1923, chegou ao Brasil aos 6 anos de idade, em 1929, no Porto de Santos, a bordo do navio a vapor Hakata Maru, juntamente com seus pais Ichizo e Yoshimi, seu irmão ainda bebê Kiyohide, e seu tio Mitsugu. A família de imigrantes logo se instalou na região próxima a Ribeirão Preto, trabalhando em lavouras de café em cidades como Brodowski e Orlândia.

No país estrangeiro, a família Fuchigami enfrentou severas dificuldades. Mitsugu separou-se da família e foi morar em São Paulo. O pai de Kiyoto, Ichizo, foi acometido por uma doença que o impossibilitou de trabalhar durante um longo tempo. Sua mãe, Yoshimi, trabalhava intensamente para sustentar toda a família. Observando sua mãe se dedicar exaustivamente, o pequeno Kiyoto decide: “Se minha mãe pode trabalhar tanto assim, então eu também posso”. E por toda sua vida manteve-se firme a esse pensamento, dedicando-se à agricultura, pecuária, olaria e comércio.

Como seus pais não falavam o idioma português e por ser o filho mais velho entre quatro irmãos, assumiu desde cedo toda a responsabilidade pela família, que se tornava cada vez mais numerosa.

Mesmo em seus últimos anos de vida, ainda mantinha o desejo de trabalhar, realizando grandes esforços para manter-se ocupado em trabalhos simples como varrer a calçada ou pintar as paredes de casa, o que conquistou a simpatia e admiração dos vizinhos e amigos. Nos últimos meses, quando o visitávamos, ele ainda dizia que queria muito poder plantar horta.

Sempre fora um forte. Quando jovem, foi vítima de um grave acidente de trator, ficando por dois anos acamado. Ainda assim, levantava-se. E levantou-se ainda muitas e muitas vezes ao longo de sua existência, mostrando que em suas veias corria o sangue de um verdadeiro 'Kumamotojin'. Ele nasceu na Província de Kumamoto, local caracterizado como um berço de pessoas fortes e valentes.

Portanto vemos que além de forte, ele era teimoso. Teimava contra as doenças, teimava contra as injustiças. Teimava sobretudo contra o tempo que lhe consumia as energias, e continuava se levantando. Ninguém era capaz de fazê-lo mudar de opinião, mostrando as profundas convicções que nutria em seu coração. Tinha um senso de valor de muita retidão e caráter. Era rigoroso, enérgico, detalhista, gostava de manter as tradições e de reunir toda a família.

O nosso 'jichan' tinha uma memória invejável. Lembrava-se de detalhes da história de sua vida, bem como tinha uma consciência histórica bem aguçada e compreendia eventos na história do Brasil e capítulos importantes da história do Japão, o que é de se admirar, visto que fez parte de uma geração com pouco acesso a informações.

Casou-se com Tatsuno Matsuda, minha bachan, que também era de Kumamoto, mas misticamente vieram a se conhecer apenas aqui em terras brasileiras. Tiveram oito filhos, sendo 5 homens e 3 mulheres, porém uma delas faleceu com poucos dias de vida. Quando a bachan faleceu, o 'jichan' mostrou-se muito triste e disse que lhe restava pouco tempo de vida. Entretanto, 16 longos anos ainda se passaram desde então. E ele foi perdendo seus familiares, um a um: seus pais, seu tio, seus irmãos. Mesmo sendo o mais velho dos irmãos, foi o último a falecer, demonstrando que conseguiu prolongar sua vida ao máximo por meio dos seus 43 anos de prática ininterrupta do budismo.

Converteu-se ao budismo por meio do seu tio Mitsugu, em 1969, acompanhado por toda a sua família. Tornou-se assim um dos veteranos que construiu a organização em São José do Rio Preto, juntamente com as famílias Hattori, Yamaguchi, Takahashi e Yamamura.

Atuou durante muitos anos na linha de frente da organização, como responsável de comunidade, o que até na década de 1980, pela estrutura organizacional, equivalia a um dos líderes de cúpula da localidade.

Naquela época, a organização não era estruturada em comunidades como hoje, cujos membros residem relativamente próximos. Era então preciso atravessar a cidade para participar quase que diariamente das atividades. E ele ia, participava ativamente, conduzindo o movimento de propagação e apoiando no transporte dos companheiros com seu velho e conhecido caminhãozinho. Era preciso ir até as cidades vizinhas para entregar os impressos da BSGI. Portanto, percorreu milhares de quilômetros pela região para promover as atividades da Gakkai, principalmente em Onda Verde. E sempre ofereceu sua residência para as reuniões do budismo.

Ao falecer, o semblante do 'jichan' estava bastante sereno, bem diferente de quando estava no hospital, enquanto travava a luta contra a doença. Isto significa que somente quando venceu totalmente a maldade da doença é que pôde enfim descansar em paz. Muito obrigado por tudo, 'jichan'. Vá tranquilo.

Pai de 7 filhos, avô de 13 netos, com 5 bisnetos, muitos familiares e inúmeros amigos e admiradores, o 'jichan' deixa muita saudade em todos nós. Agora a história continua pelas nossas mãos. Temos do 'jichan' não apenas lembranças, mas muitas lições e um grande exemplo de vida. Cabe a nós vivermos plena e dignamente, em gratidão e retribuição aos esforços de toda a sua vida.

Finalizando, em nome de toda a família, agradeço profundamente as manifestações de apoio, consideração e carinho e a presença de todos na cerimônia de hoje.

Sim, estamos tristes, mas não queremos chorar a sua morte. Ao contrário, queremos celebrar a sua vida. Por isso que neste momento convido a todos que, de pé, prestemos nossa sincera homenagem oferecendo uma salva de palmas à existência vitoriosa do Sr. Kiyoto Fuchigami.

Muito obrigado!

(Cerimônia de 7º dia de falecimento – 10/08/2012)

# Para a elaboração deste texto foi imprescindível a ajuda do meu irmão Rafael, tanto com informações como inclusive no envio de parágrafos prontos. Brigadão! #

Hélio Fuchigami
Enviado por Hélio Fuchigami em 13/08/2012
Reeditado em 15/08/2012
Código do texto: T3828411
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