As mangas do Zé Vovô

Com aquela linguagem nasalizada ficava mais fácil falar manga, mas vendê-la era como em boi brabo botar a canga. E foi assim que nos deparamos com aquela figura espigada, dona de mais de sete décadas de existência e resiliência. Era o Zé Vovô que nos batia à porta.

Vinha com suas mangas botadas pra fora, naquele balde todo enodoado, elas próprias ainda escorrendo aquela resina que impregnavam os dedos, jorrando frutais segredos. Eram todas do tipo comum, daquelas cheias de fiapos que são uma beleza pra se agarrarem entre os dentes, mas que não satisfazem os gostos de todas as gentes.

Óia a manga, dizia ele, logo baixando o balde e expondo a fruta à nossa vontade dissoluta. E, entretanto, o que mais nos apreciava era ter ali à frente obsequiosidade duma pessoa adulta, querendo merecer nossa atenção.

A recusa era geralmente a praxe, pois faltavam-nos em conjunto tanto a grana quanto a gana. Y punto? Não, queríamos examinar mais aquela figura, enquanto um dos petizes saía correndo casa adentro para avisar os pais da insólita visita. E, via de regra, trazer um não por antecipação.

Fossem mangas pequi, poderia ser outra história. Mas dessas não tinha o Vovô, que vivia pertinho, na rua paralela de baixo, o chamado Beco dos Canudos.

Mas o interesse daquele velho da cabeça raspada, da pele alva pelo sol crestada não se situava só na venda da fruta. Ele vinha pela rua catando pregos enferrujados, pedaços de arame, lataria, alumínio, para bem aproveitar o carreto na viagem da volta. E ensinava que os pregos poderiam ser desentortados, reaproveitados e a ferragem vendida a algum ferro velho, como o do Zé de Aquino.

Zé Vovô já tinha a família criada e apenas o seu caçula, Zé Maria, já empregado e sistemático feito o pai é que vivia com a família, que se compunha ainda de dona Lóia, mais germânica do que metralhadoras que derrubaram nossos heróis em Pistóia. Não que fosse braba, era pela aparência, com seus olhos azuis, loira, havera de ter sido uma bela e prendada Mädchen em sua mocidade. Na certa desistira de lavar o balde do marido e se dedicara a fazer uma coleção de latas novinhas, geralmente de leite em pó, com que dava brilho ao seu asseio na cozinha.

E o Zé Vovô? Sem mais construções ou reformas na nossa redondeza, e baldado na tentativa de vender sua fruta, ia bater noutra porta, outra fase de sua labuta.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 26/03/2015
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