MEU PAI

MEU PAI

Assim lembro-me do meu pai, quando ainda era pequenina. Ora trabalhando, ora tocando seu violão e cantando... Sim, ele gostava de cantar músicas de Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Vicente Celestino enquanto seus dedos ágeis dedilhavam as cordas. Nunca foi numa escola de música, mas em seu tempo de solteiro era convidado a animar as festas. Sua banda? Apenas voz, violão e uma marcação, como um pandeiro ou um tambor. Hoje precisa-se de tanta tecnologia para animar as pessoas...

Começou a trabalhar muito cedo. Queria ser independente e aos 17 anos conseguiu a permissão dos meus avós para morar sozinho num sobrado do outro lado da rua que pertencia à família. Mesmo a contragosto consentiram e assim ele começou uma nova vida. Cozinhava, lavava, passava, criava galinhas, porcos e tinha uma vendinha, na parte térrea da casa. Assim ele começou sua vida de homem trabalhador. Em 1953, alugou uma casa vizinha, ampliou o comércio, casou-se com mamãe e em 1954, eu nasci.

Adorava ler. Só concluiu o primário, mas sabia muito mais que qualquer aluno com ensino fundamental completo. Fez até Curso de Contabilidade por correspondência e na matemática financeira desafiava qualquer um.

O que mais me admirava era ver papai despachar enormes quantidades de mercadorias e no final ter a soma prontinha na ponta da língua. Era como se tivesse uma calculadora invisível. E não lesava ninguém. Honestidade foi o que ele mais ensinou e exigiu de nós. E o mais bonito: todos confiavam, respeitavam e o admiravam.

Nessa época, por lá ninguém falava em polícia. Homicídios eram muito raros e resolvidos pela justiça das cidades mais próximas. Brigas e entreveros? Ah! Isso era comum, principalmente nos finais de feiras. Bebiam além da conta e a confusão era certa, mas bastava a presença de papai ou de vovô no recinto e a ordem de parar a contenda, para que a paz voltasse a reinar. Bons tempos!

Não bebia, mas fumava e isto lhe ocasionou muito sofrimento com o avanço da idade e lhe custou alguns anos de vida.

Eu tinha quase cinco anos quando nasceu meu irmão. Papai começou a construir a nossa casa, que não seria de taipa com reboco, como a que morávamos de aluguel, mas de adobes que ele fabricava artesanalmente, desde a confecção da fôrma. Não usava a palha, apenas um barro especial, rico em uma liga forte, encontrado próximo ao riacho. Na fase de acabamento, assim que fechava o armazém ele aproveitava para acelerar o serviço e eu o acompanhava. Admirava vê-lo trabalhando, fazia perguntas, – sempre fui curiosa – e quando o sono chegava deitava em um coxinilho sobre uma capa colonial e acordava na manhã seguinte em minha cama. Acho que veio daí a minha atração por construções.

Assim foi feita a nossa casa. A única coisa que eu não gostava nela era o banheiro, que ficava a mais ou menos 20 metros. Papai não admitia banheiro dentro de casa. Na época eu achava que era somente implicância, mas acabei descobrindo que era um costume muito comum na zona rural de algumas pequenas cidades norte-americanas.

Em meados do ano de 1964, deixamos Ventura e sob muitas expectativas, fomos residir em uma cidade “grande e linda” de um estado vizinho. Lá teríamos uma grande loja de tecidos em sociedade com um velho amigo. As coisas não funcionaram conforme o esperado e tivemos uma perda irreparável, em março de 1965, mamãe fez a “grande viagem”, após uma cirurgia e nos deixou sem chão. Papai então, tornou-se o viúvo mais cobiçado da cidade. Jovem, bonito, empresário, o único defeito era ter dois filhos. Como tudo sempre está escrito, acabou por encontrar a pessoa certa e casou-se novamente e pouco tempo depois decidiu acabar a sociedade e retornar às origens.

Foram tempos difíceis! Mas aos poucos tudo se normalizou. Construiu uma nova família e aos 82 anos retornou ao mundo espiritual deixando viva em nosso caráter, a maior herança que nos legou - a honestidade, virtude tão rara e esquecida nos tempos modernos. “Um nome honrado é aval para uma infinidade de boas ações e para uma vida inteira.” – sempre nos dizia. Tinha defeitos. Claro que os tinha, como todos nós. Ora, se anjos fôssemos, aqui não estaríamos, mas as suas qualidades pesavam mais, na balança da vida.

Saudades? Muitas, mas a tristeza que se abateu sobre nós quando da sua partida, foi substituída pelas boas lembranças e pela confiança que temos nos planos do nosso Criador. E ele continuará vivo para sempre em cada um de nós, através dos seus ensinamentos, do seu amor.

Que Deus lhe abençoe meu Pai! E também abençoe todos os pais do mundo!!!!

Fátima Almeida

07/08/2015

Nota:

Adobe - O tijolo de adobino é um material vernacular usado na construção civil. É considerado um dos antecedentes históricos do tijolo de barro e seu processo construtivo é uma forma rudimentar de alvenaria.

Coxinilho- Espécie de tapete confeccionado artesanalmente, com fios de barbante presos a um tecido, que servia de manta para montarias. Era usada sobre a sela para deixar o assento mais confortável. (Nota da autora)

Fátima Almeida
Enviado por Fátima Almeida em 14/08/2015
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