Centenário da morte do poeta Mário de Sá Carneiro

Evoco com este texto a memória do poeta Sá Carneiro, agora que passaram cem anos sobre o seu falecimento. A efeméride foi recordada aqui em Portugal com várias iniciativas e eventos, segundo posso ler na imprensa.

Acredito que a maioria dos que possam ler estas humildes palavras não tenham sequer ouvido falar neste autor, pois observo ao longo deste dez anos de convívio aqui no Recanto, que o povo brasileiro conhece Pessoa, Camões, Florbela e poucos mais.

Mas a verdade é que Portugal é celeiro de inúmeros poetas consagrados que vale muito a pena conhecer e Sá Carneiro é um deles - e não apenas por ter sido um amigo e confidente de Fernando Pessoa.

O poeta Mário de Sá Carneiro (19.05.1890 / 26.04.1916) nasceu em Lisboa, no seio de uma abastada família, sendo filho e neto de militares. Órfão de mãe com apenas dois anos, ficou entregue ao cuidado dos avós.

Matriculou-se na Universidade de Direito de Coimbra e depois na Universidade de Paris, mas nunca chegou a terminar o curso. Na Cidade Luz descobriu o cubismo e o modernismo e foi ali que escreveu a maior parte da sua fugaz mas profícua obra.

Em 1912 começa a corresponder-se com Fernando Pessoa, deixando logo ali patente um percurso auto destrutivo. Ele, Pessoa e outros autores foram fundamentais para a renovação da literatura portuguesa com a publicação da revista Orpheu, da qual apenas saíram dois números.

Inadaptado socialmente e psicologicamente instável, foi neste ambiente que compôs grande parte da sua obra poética e a correspondência com o seu confidente Pessoa.

As cartas que trocou com Pessoa, entre 1912 e o seu suicídio, são como que um autêntico diário onde se observa paralelamente o crescimento das suas muitas frustrações interiores.

A partir de 1915 as suas cartas revelam uma cada vez mais crescente instabilidade das quais ressalta não apenas a imagem lancinante de um homem perdido no «labirinto de si próprio», mas também a evolução e maturidade do seu processo de escrita.

A crise de personalidade levá-lo-ia, mais tarde, a abraçar uma poesia onde se nota o delírio de experiências sensórias, pervertendo e subvertendo a ordem lógica das coisas, atestando a sua incapacidade de viver aquilo que sonhava – sonhando por isso cada vez mais com a aniquilação do eu, o que acabaria por o conduzir, ao seu suicídio.

O poema “FIM” exemplifica muito dos seus conflitos existenciais:

FIM

“Quando eu morrer batam em latas,

Rompam aos saltos e aos pinotes,

Façam estalar no ar chicotes,

Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro

Ajaezado à andaluza...

A um morto nada se recusa,

E eu quero por força ir de burro!”

Mário de Sá Carneiro, Paris, 1916

Mário de Sá Carneiro é o autor de “Quase”, o poema por excelência que melhor define a génese de ser português:

QUÁSI

“Um pouco mais de sol - eu era brasa,

Um pouco mais de azul - eu era além.

Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...

Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído

Num baixo mar enganador de espuma;

E o grande sonho despertado em bruma,

O grande sonho - ó dor! - quási vivido...

Quási o amor, quási o triunfo e a chama,

Quási o princípio e o fim - quási a expansão...

Mas na minha alma tudo se derrama...

Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...

- Ai a dor de ser - quási, dor sem fim... -

Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,

Asa que se lançou mas não voou...

Momentos d'alma que desbaratei...

Templos aonde nunca pus um altar...

Rios que perdi sem os levar ao mar...

Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...

Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;

E mãos de herói, sem fé, acobardadas,

Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,

Tudo encetei e nada possuí...

Hoje, de mim, só resta o desencanto

Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,

Um pouco mais de azul - e fora além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa...

Se ao menos eu permanecesse aquém... “

Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'

Alguns estudiosos da obra de Fernando Pessoa defendem que este se inspirou no amigo para criar o heterónimo Álvaro de Campos, que é uma personagem completamente antagónica a Sá Carneiro.

Em 26.04.1926 (precisamente dez anos depois da morte de Sá Carneiro), Fernando Pessoa dedicou-lhe um poema vasto, utilizando o heterónimo de Álvaro de Campos.

Eis aqui os primeiros versos dessa ode:

“Se te queres matar, porque não te queres matar?

Ah, aproveita! Que eu, que tanto amo a morte e a vida,

Se ousasse matar-me, também me mataria...

Ah, se ousares, ousa!

De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas

A que chamamos o mundo? “ (…)

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Notas finais:

Obras poéticas: "Dispersão" (1914), "Indícios de Oiro" (1937).

Obras de ficção: "A Confissão de Lúcio" (1914) e "Céu em Fogo" (1915).

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Abílio Henriques,

06.05.2016

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Enviado por HENRICABILIO em 07/05/2016
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