A uma velha amizade

A uma velha amizade

I

Chegaste certo dia muito cedo

com o dono da casa a trazer-te a mala

e foste te abarcando, pela sala,

do silêncio em que eu dormia em segredo.

Tua voz irritou-me até a ponta dos dedos,

porque tu eras pura energia e disposição,

mas, no lugar de raiva, inveja ou medo,

entregaste-te, sempre altiva, teu coração.

Brigamos certas vezes pela vida

e quis o destino que ficaste sumida

de meus olhos, meus gestos e minhas mãos.

Hoje não sei por onde andas, na cidade

às vezes paro e penso em ti, Felicidade:

um dia (e para sempre) ficamos irmãos.

II

Às vezes me perguntava: Como podia

um ser com tamanha propriedade

personificar tanta luz e bondade

em meio a um passado de agonias!

Contando-me sua história, me dissera

que deixara chão muito sofrido para trás,

mas na bagagem havia muita paz

a lhe salvar da Morte, capataz onde estivera.

Fizera-se uma diva entre os amigos

e eu perguntava: por que comigo

deseja compartilhar suas lúdicas cores?

E enquanto eu insistia em ser neblina,

mais sol resplandecia essa feliz menina

dos olhos de tantos beija-flores.

III

Está chovendo e eu, trancado em casa,

jamais esquecerei que deste asa

aos sonhos que um dia eu tive

em tua dadivosa companhia.

De alguns amores meus foste Cupido

e, nessa de acolher e ser acolhido

fui cultivando válidas experiências

que deram mais sentido a minha existência.

Por isso, velha amiga, me perdoes

ter contaminado algumas vezes tuas flores

com implicante e insistente amargura.

Recebe, hoje, minha lágrima furtiva

de amor, com que eu sei que ainda cultivas

o sol que aquece tantas criaturas.

IV

E que venham a nós novas amigas tuas

inspirar já de manhã as gentes

a percorrer a imensidão das ruas

muito felizes de seres presente.

Felicidade, vê se amolece

com teu poder aquele coração

que do maior ensinamento esquece:

sê luz, amor, carinho e mansidão.

Onde estiveres, saibas que, em verdade,

vêm visitar-me a Dor e a Saudade

que te procuram sempre onde não estás

porque, já cegas por tamanha idade,

só tua essência, amiga Felicidade,

há de guiá-las sempre para onde vais.