Coletânea de cacoetes

Uma semana já se passou desde que notei pela primeira vez o estranho hábito de coçar a ponta do dedão da mão esquerda. Comentei o fato com alguns amigos e todos disseram a mesma coisa: é cacoete. Foi quando decidi procurar um especialista. Fui a um médico recomendado pela minha cunhada, ela tinha a mania de cuspir e chutar o catarro. Graças a esse médico, conseguiu parar de cuspir, mas ainda está em tratamento para parar de chutar. Ao chegar na sala de espera do consultório, deparo com um grande número de pacientes. Penso em desistir e voltar outro dia. Fico. O primeiro na espera me chama a atenção não pelo tique-nervoso, e sim pela estranha marca vermelha em forma de mão no rosto. Não demoro muito para adivinhar o cacoete. O homem pisca lentamente o olho direito de quando em quando. O segundo tem um hábito bem comum. A todo instante sulga os dentes, como se quisesse tirar um grão de arroz preso a um buraco de cárie. O terceiro olha para mim. Sobrancelhas grossas e semblante carregado. Aparentemente, não tem qualquer tipo de tique. De repente, os olhos arregalam como os de uma coruja. Se dar um único passo em minha direção, saio correndo. Tudo bem, logo volta ao normal. O fenômeno só acontece de vez enquando. O quinto sorri para mim com uma bocarra obscena. Quase desdentada, não fosse um único dente bem na frente. Cumprimento-o rapidamente com um movimento de cabeça, não querendo dar muita confiança. Tem um tique até bem modesto, embora muito feio: enfia o dedo no nariz à procura de tatuzinho e, quando acha, arremessa com o indicador pressionado no polegar. Fica a dúvida se é realmente um cacoete ou falta de educação. Não é possível observar por muito tempo o quinto na fila de espera, porque ele cotovela rapidamente, de quando em quando, como num reflexo, o caçador de tatus. Este, por fim, acaba dando-lhe um pé-no-ouvido e ele sai correndo. O sétimo está conversando com o oitavo. Ao iniciar uma frase, força a garganta e dá uma tossidinha; o oitavo, ao terminar uma frase, funga duas vezes e sacode a cabeça para cima e para baixo. O nono paciente me angustia pela expressão triste, cabisbaixa, orelhas caídas e maiores que o normal. Parece um cocker spaniel. Mesmo penalizado, assistir a cena cacoetânea, do indivíduo esbofetear lentamente, de quando em quando, as orelhas de trás pra frente, como a espantar moscas, faz coçar minha a garganta num intuito de riso, tornando esses momentos tão agradáveis quanto um filme de Wood Alen. No outro banco, uma grande variedade de cacoetes de um tipo mais complexo. Na ponta do sofá está um sujeito vestido de calças xadrez boca-de-sino, camisa florida, sapatos à Luiz XV e um Ray-Ban tamanho gigante com lentes verdes. Tudo no mais alto estilo década de 70. O cacoete dele é jogar, com um impulso, o longo topete do cabelo para trás, apesar de ser ele careca. Dentre todos os casos, os mais graves são dos décimo oitavo e décimo nono. Fico estatelado ao constatar em que proporção evoluiu o homem no aspecto cacoético. Se a janela estivesse aberta, o décimo oitavo sairia voando por ela. Joga os cotovelos para trás, levanta os ombros, unindo as espáculas, o pescoço estica para frente enquanto saltita, parecendo uma garça ao decolar. O décimo nono..., bom, esse é quase indiscritível. É uma coletânea de cacoetes. Provavelmente é um colecionador, veio apenas para se aprimorar com novos tipos. Assobia, assopra, estala a língua e os dedos, revira os olhos e bate os braços. Tudo ao mesmo tempo. Freud ficaria louco de felicidade se tivesse tido um espécime desse para analisar. Uma hora mais tarde, o médico pronuncia meu nome. Faz várias perguntas tipo: tem problemas familiares, é homossexual e coisas assim. Ao decidir examinar meu dedo, diagnostica ser nada mais que um espinho cravado. Fico frustrado, mas o doutor me fez voltar a atenção para um detalhe curioso. Ele, o médico, também tem um cacoete: passa o tempo todo coçando.

Marcelo Melero
Enviado por Marcelo Melero em 29/01/2006
Reeditado em 08/10/2008
Código do texto: T105341