Alma penada

Os sentimentos se dissolvem em lágrimas de sangue. Uma voz o acusa. Reprimido pela tortura dos séculos, enforca-se com o lençol da cama. Um ano depois, arrependido por se matar, volta encarnado em uma flor. Chamam-no de covarde e sua alma murcha e a chuva o arrasta novamente para a cova. Desnaturado pela vida, odiando a si mesmo, decide diminuir para ninguém o notar e volta ao mundo como mosca. Enojados por sua incapacidade, dão-lhe uma chinelada. Persistente no direito de viver, incapaz de ser visto pelos olhos humanos, volta enfim como minhoca. Certo que desta vez não será rejeitado, pois ninguém o verá. Mas seu destino está milimetricamente traçado. É encontrado por um pescador solitário. Este o enfia num anzol e o joga a um bagre esfomeado. Enfezado pelo destino infausto que o fizera inacessível ao direito universal, recusado e apedrejado por todos, excluído do livro dos vivos, enche-se de raiva e vingança e volta como verme. Provoca tifo num açougueiro, mas este se restabelece logo e todo faceiro. Desgraçado, desiludido, esfomeado de compreensão, sedento de justiça, perdido em seus lamentos, chora e urra ao vento e ao vazio cheio de nada. Decide não viver mais e permanece como alma. Pobre alma, nem mesmo como alma consegue viver em paz. Num dia de inverno, aproxima-se de uma lareira para se aquecer e é puxado pelo diabo, que o manda não ir para o inferno.

Marcelo Melero
Enviado por Marcelo Melero em 29/01/2006
Reeditado em 08/10/2008
Código do texto: T105355