Sobre mulheres e carros
Papo de meia dúzia de três ou quatro na beira da praia, ao som do mar e à luz do céu profundo, em pleno inverno carioca.
Disseram – aqui, um sujeito indeterminado que, mesmo no plural, quer dizer que foi uma só pessoa que disse –, disseram, eu dizia, que a Fulaninha (nome fictício) tinha “ficado” com alguém numa festa na noite passada. Quiseram – aqui o indeterminado já é uma desinência de todos –, quiseram saber quem era o cara. Quem contou a novidade não soube dizer, era um sujeito que ela tinha acabado de conhecer.
(Uma) alguém quis saber se o eleito era ao menos bonito. A resposta não foi conclusiva.
- Se era bonito, eu não sei. Mas sei que estava de Audi – disse a fonte.
Foi assim que tudo começou.
- E estar de Audi quer dizer alguma coisa? – perguntou uma alma pura.
- Tolinho – disse a Alguém. – Não sabe que Audi é carro de pegar galinha?
- Pensei que para pegar galinha qualquer carro que ande servisse – disse um cínico.
- Ou qualquer ser movente que ande com as próprias pernas – remendou outro ainda mais cínico.
- Não. Mas galinha do tipo da Fulaninha (nome fictício – nota do autor) gosta mesmo é de carro importado.
- Galinha fresca.
- Com pedigree.
- Aposto que deu – provocou a Alguém. – Facinho.
Ninguém quis apostar. Era barbada.
Sobre essa questão de dar ou não dar no primeiro encontro, facinho ou não, volto em seguida, pois é um tema que merece um capítulo à parte, não um espaço sublocado.
Nesse instante, passou pela beira duas gostosas saradonas, levando com elas todas as cabeças (Eu disse TODAS!).
- Se Audi é carro pra pegar galinha fresca, qual é o carro pra pegar cavala? – provocou o Cínico, um segundo depois dos respectivos pescoços terem girado de volta, trazendo TODAS as cabeças.
- Ferrari – respondeu o Mais Cínico.
- Acho que Audi serve pra pegar qualquer um – disse o Alma Pura, sem muita reflexão.
- Hum... Será que ouvi um suspiro airoso? – perguntou o Cínico, que era também debochado.
- Qualquer animal desse gênero – consertou o Alma, indignado.
- Qual gênero? – insistiu o Mais Cínico, que era também mais debochado. - Gênero feminino? É isso que você quer dizer?
- Não. Gênero de mulher assim, na linha animal... – explicou o Alma antes que a Alguém protestasse.
- Ok – disse o Cínico. - Vamos aceitar que o Audi é um hiperônimo, pega qualquer mulher, mulher enquanto animal, claro...
- Ferrari é hipônimo – emendou o Mais Cínico. – Pega mulher cavala.
- Ferrari e Mustang – completou a Alguém.
- Ou então Corcel – sugeriu o Alma, novamente sem muita reflexão.
- Corcel já saiu de linha há duzentos anos! – impugnou o Cínico.
- É. De Corcel o cara só pega daqueles pangarés magros, cheios de ferida...
- Pára! – suplicou a Alguém, horrorizada.
- E perua? Qual carro pega mulher perua? Parati?
- Parati, Saveiro, Variant, qualquer carro desses pra família... – respondeu o Alma.
- O que quer dizer que para ser perua pressupõe a existência de um marido... – mandou o Cínico.
- Ou de um trouxa qualquer para pagar as contas – arrematou o Mais Cínico.
- Ah, sim – sentenciou a Alguém. – Definitivamente.
Houve um instante de silêncio.
- Acho que a Beltraninha (nome fictício – nota do autor) prefere um GM... – insinuou o Cínico.
Beltraninha era uma amiga em comum, sabidamente esporádica “peguete” do Cínico, que além de cínico e debochado era também indiscreto.
- GM? – perguntou o Alma com sua habitual falta de reflexão, que dessa vez pelo menos traduziu a incompreensão dos demais.
- GM, GM... – repetiu baixinho o cínico, fazendo um tom anasalado e prolongado, como um longo gemido.
A ficha caiu. Todos riram.
- Caraca!... – exclamou a Alguém. - Você é muito cretino.
Aquilo para o Cínico era um elogio. Ele riu orgulhoso.
- Então o carro da Sicraninha (nome fictício – nota do autor) é uma Towner – disse o Mais cínico, aqui também mais óbvio, devido a reputação da moça em questão. – Dá pra oito.
- E pára pra quem fizer sinal – completou Cínico.
- Pra quem fizer sinal, mesmo que esteja fora do ponto – acrescentou o Mais Cínico.
- Basta assobiar, balançar a mão... – contribuiu o Alma.
- Balançar a mão? Será que é a mão mesmo que você quis dizer? – debochou o Mais Cínico.
- Não! Chega! – gritou a Alguém. – Baixaria, não.
Viu? Esse era o mote do papo naquela manhã na praia em pleno dia útil. Sacaneia, mas não esculacha. Ou será o contrário? Nunca sei.
- Eu ia dizer que podia balançar o pé também... – alegou o Mais Cínico, fingindo constrangimento com o esporro da Alguém.
- Ah, sei.
- Lógico – aproveitou o Cínico. – Se o pé for grande é que ela pára mesmo...
- Hum... Que pezão!... – o Mais Cínico fez uma voz de falsete.
- Me pisa, me pisa... – imitou o Alma, mas naquele seu tom airoso que sempre levantava suspeitas.
Os cínicos gargalharam. O Alma riu também, mas meio na dúvida, desconfiado do que os outros estavam rindo. Só a Alguém não riu. Parecia pensativa.
- Nesse caso – ela disse -, a Ziltrana (nome fictício – nota do autor) prefere picape.
A imagem da Ziltrana se desenhou na cabeça dos outros. Mignonzinha, bem nojentinha, namorada do Toni... que... por sua vez... era ex da Alguém.
Sim, era uma charada, um desafio, e todos gostavam disso. Mesmo na praia. A Alguém ganhava pontos por sua inteligência - e por um outro atributo que não convém mencionar aqui.
- Picape? – perguntou o Alma. – Picape?
- É. Pi-ca-pe. Pi-ca-pe – repetiu a Alguém.
O Mais Cínico repetiu a palavra, pronunciando as sílabas bem separadas, como havia feito a Alguém. O Cínico fez o mesmo e foi mais rápido na conclusão.
-Aaaahhh... Entendi. Pi-ca-pê...
E fez com os dedos um gesto de coisa pequena, mostrando o polegar e o indicador bem próximos.
- Aaaahhh... É mesmo? – disse o Mais Cínico, surpreso. – Não sabia que o Toni tinha uma picape, não. Quem diria? Com aquela marra toda...
- Marra não é sinônimo de acessório, meu filho – tripudiou a Alguém.
Foi então que o Alma Pura fez um comentário que surpreendeu a todos pelo que continha de reflexão:
- No caso da Ziltraninha, se não for picape, vai ser um tal de GMMM...