A Boca do Copo

S.O.S era um popular pau d’água que entornava todas. Aposentado dos correios, onde era telegrafista nos tempos do Morse, ele perambulava pelos piores botecos da periferia daquela pequenina cidade. A própria cidadezinha era uma periferia de uma grande zona de baixo meretrício, que lhe ocupava vastamente dois quarteirões centrais, contíguos à câmara e prefeitura, não menos zoneadas e de alto meretrício, como dizia ele, ao lado do fórum do pequeno-grande meritíssimo, como era conhecido um juiz baixinho e franzino que ali atuava energicamente.

A rotina do S.O.S tinha a ver com o seu nome, menos em causa própria, uma vez que se encharcava de bebida, já abrasado por uma vermelhidão estuporada por suores em profusão, que lhe dava a impressão, a olhos vistos, de permanente derretimento.

Ele, assim que acordava, lavava seu par de pererecas, ensaiava um sorriso no espelho, lavava o rosto, sempre em brasas, passando água e azeite doce (de oliva) nos cabelos, arando-os para trás com uma ordinária escova redonda de cerdas plásticas careadas, que portava no bolso traseiro da calça. E até que ficava elegante com os cabelos sulcados, como uma lavoura bem podada, até o advento do primeiro espirro. Ao escanhoar (palavrinha já fora de moda) a barba, com farta espuma, ele colocava um cigarro à boca, sentindo-se o próprio Humphrey Bogart. Em seguida a queimava com Água Velva, com a qual bochechava misturada a um pequeno gole de água de torneira. Vestida a roupa do dia, ia até a cozinha, tomava um conhaque ou o que tivesse, a seco, acendia outro cigarro e com os óculos escuros, que lhe escondiam as congestionadas bolsas dos olhos, rumava para o mercado municipal, onde concentrava-se o comércio local.

Dona Mariquitinha, proprietária do botequim preferido dos feirantes, já estava lá, em plena ação, arrebitadinha como ela só, após uma noite de mil façanhas vividas com um caminhoneiro viajante, vendedor de cocos verdes, de nome Tó.

Ela comprara todos os seus cocos e o seu amor também. Tó partira na madrugada, feliz da vida, rumo à Bahia, levando no seu caminhão uma carga de sacarias de Minas, incluindo a própria. No pára-choque levava escrito: Batida? Só de coco.

Por volta das nove e meia da matina, S.O.S recostava-se no balcão ensebado daquela bodega e pedia uma caninha, sorvida de um só gole, sem passagem pela boca, caindo-lhe diretamente guela abaixo. Já o cigarro, aceso em sequência, era tragado lentamente, permitindo uma absorção prazerosa, intercalada com a gelada cervejinha. Tomava quantas agüentasse, até apagar e ser conduzido à sua casa, passando pelo hospital, vez ou outra.

Mas, invariavelmente, após a terceira rodada, quando já se encontrava devidamente acomodado numa confortável poltrona, que a Mariquitinha lhe oferecia com a maior reverência, S.O.S. transformava-se num sensitivo, muito esperado por um grupo de consulentes, sempre ali ao lado, fazendo a sua hora e consumindo o que houvesse. Nesta altura, sua felicidade era completa. Tinha tudo o que queria e distração gratuita. Os espíritas diziam que ele recebia uma entidade que, apesar de não revelada pelo mesmo, lhes fora revelada em sessão como sendo um desconhecido monge holandês, muito bonzinho, de nome Aimberê Von der Powel, que fora comido pelos morubixabas, com um ensopado de batatas, num jantar tropical. O monge jura, nas suas aparições, que não é verdade, mas os registros históricos não mentem, como não mentem, também, que o seu prenome lhe foi dado por tais índios, porque ele era insistente e corajoso, igual ao chefe deles, não se abdicando do seu Deus que ameaçava tomar o lugar de Tupã. Daí, Aimberê – o que não verga, o que não dobra.

A sua primeira consulente foi uma mulher que queria saber se estava sendo traída pelo marido. Ele então lhe disse que não tomasse banho no final da tarde no Poço das Três Moças do ribeirão Setúbal. A mulher saiu dali sem entender bulhufas. Em seguida, um comerciante que lhe perguntou se os seus negócios prosperariam até o final do ano, recebeu a resposta de que pior que a pobreza era um caixão. Dona Pituca pediu-lhe que olhasse o seu filho de quatorze anos, que lhe parecia estar envolvendo com drogas. Ele disse que droga pesada estava na farmácia.

E assim passava o tempo, até que S.O.S. apagasse, sendo levado para casa.

A vida dele cumpria sempre a mesma rotina. Mas na terça-feira que se seguiu, S.O.S não atendeu a ninguém. Disparou a falar com um copo continuadamente, curvando a cabeça até o balcão para ouvir o falante recipiente.

A conversa começou a ficar extremamente acirrada, com SOS muito nervoso, quando Dona Mariquitinha intercedeu, ponderando que copos não falavam. SOS então bradou: - Este fala e está com mau hálito!

Sobre o balcão, ao lado do caixa, o jornal local estampava as seguintes manchetes: Amantes são assassinados pela esposa traída, quando banhavam-se à tarde no Poço das Três Moças. Morre o dono do maior comércio atacadista da cidade; Farmacêutico é internado com overdose de cocaína.

A partir daquela terça, muitos boatos corriam pela cidade, contados, dizem, pelos copos da Dona Mariquitinha. E que tinham maus hálitos, isso lá tinham!

Nota: Este texto foi postado a pedido do Di do Mal.rsrsrsrs.

Di Amaral
Enviado por Di Amaral em 13/11/2008
Reeditado em 10/11/2009
Código do texto: T1282096
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