A chave no vaso (Com os burros n'água)

Segurou tão apertado a chave do apartamento nas mãos que ela lhe fez uma marca na palma, imprimindo um “Papaiz” em baixo relevo. Que tesouro possuía ali, aquele pedaço de metal aquecido pelo suor da expectativa, e bem dentro de sua mão... Finalmente, a chave do apartamento do melhor amigo! Belinha, a um girar de chave e maçaneta, ao alcance de seus dedos, de sua boca, de todo o seu corpo... Belinha, a bela entre as belas, prestes a ser sua!

Ainda não acreditava que havia conseguido. Depois de tantos vôos rasantes, passos em círculo, declarações rasgadas... depois de tantos cinemas, escadas de incêndio, muros em ruas desertas, agora sim ele teria um lugar para servir de castelo para sua princesa; ele, príncipe quase desencantado da vida. Tão sem dinheiro, tão impossibilitado de leva-la a um lugar mais tranqüilo! Mãe e pai sempre presentes, motéis caros, e à parte o detalhe: ainda lhe faltava um carro. Onde iriam consumar a paixão que os consumia? O amigo, sem saber, lhe dera o passaporte para o céu. Belinha, um apartamento inteirinho só para eles e um princípio de noite quente de novembro. Deveria levar flores? Um vinho?

Foi para casa se arrumar, saltitante, conferindo a toda hora a chave no bolso de trás da calça. Isso, um vinho, de repente bombons... de licor? Não. Flores e um vinho. Quem sabe queijos?... Pensando melhor, só uma cerveja. Que o mar não estava pra peixe.

Enquanto se decidia, arrumava-se no banheiro. Olhou-se ao espelho, conferiu o rosto bem escanhoado, o cabelo impecável. Feliz da vida, sentou-se no vaso sanitário. Foi quando tudo aconteceu.

Ouviu o barulho metálico escorregando pela louça, e mal teve tempo de ver a chave descer, indiferente, tubulação abaixo. Abafou um grito, desesperou-se, quase tentou enfiar a mão água adentro, mas percebeu a tempo a inutilidade (e a insalubridade) de seu gesto.

Belinha, sua princesa, adiada sine die porque o castelo estava agora inacessível, sem ponte levadiça e rodeado por um fosso - não, muito pior: por uma fossa!

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Este texto faz parte do 6º Desafio Recantista de 2009

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