ASTÚCIA CAIPIRA

Na verdade lembrei dessa quando li algures "astúcia". Existem palavras que caem em desuso, como "algures" e "solércia", que, acreditem, também já significou astúcia.

"O politico tortuoso e solerte que faz da política um meio de existência e supre com a esperteza criminosa a superioridade de pensar", diz Euclides da Cunha em "Contrastes e confrontos". Passado quase um século, a palavra solerte desapareceu, mas os políticos de esperteza criminosa se reproduziram, e muito.

Mas o propósito não é lembrar das palavras mortas, mas sim do caipira, morador da roça, de pouca instrução e modos canhestros.

Canhestros e caipiras também restam poucos.

Mas então o caipira subiu no trem, (taí outro meio de transporte que sumiu), arrumou suas tralhas no maleiro, colocou o bilhete enfiado na aba do chapéu e sentou.

Piui, piui, troc, troc, troc, troc, piui, piui, lá se foi o trem.

Mais tarde chega ao vagão o chefe do trem pra picotar os bilhetes.

Pra quem não sabe, naquele tempo comprava-se o bilhete para viajar e a cada cidade, a cada estação, o chefe passava para conferir o bilhete e o destino, que era pra ninguém viajar de graça.

Pois bem, chega o chefe do trem, o caipira se levanta assustado e fica revirando os bolsos à procura do bilhete e nada de o encontrar.

O chefe vê o bilhete enfiado na aba do chapéu, mas não diz nada.

Quer ver o caipira todo espavorido.

Espavorido ! Outra palavra que morreu !

O caipira apalpa daqui, revira ali, e se mostra assustado por não encontrar o bilhete.

O chefe ameaça:

"Vou até o último vagão e volto. Se o senhor não encontrar o bilhete vai ter que desembarcar na próxima estação."

Coitado do caipira !

A atrapalhação dele era de dar pena.

O chefe do trem voltou e encontra o caipira de bunda pra cima, caçando o bilhete em baixo dos bancos.

E o bilhete ali, à vista de todos, enfiado na aba do chapéu.

O chefe morre de rir. E resolve atenazar o caipira mais um pouco, repetindo a ameaça toda vez que passava pelo vagão.

Atenazar?

Quem quiser que procure no dicionário, porque é só lá que hoje a palavra se encontra.

Mas vamos seguir em frente, que evoluir é o que importa.

E foi assim o resto da viagem, atazanando o caipira todo tempo.

Finalmente o trem pára numa estação.

O caipira pega seus trens, digo, suas tralhas e se apressa a descer, antes da chegada do chefe.

Foi ai que um bom cristão ficou com pena do coitado e resolveu avisá-lo:

"Ei, caipira, o bilhete tá na aba do teu chapéu!"

E o caipira rapidinho:

"Pissiu! Diga nada não moço! O bilhete é velho e eu ia descer é aqui mesmo!".

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Sajob - agosto/2011