A Caneca de Beiço Rachado

Manoel era um sujeito excêntrico. Chato de galocha, tinha a mania de limpeza. Era um convidado dos mais irritantes em qualquer casa, pois ficava examinando pratos, cheirando copos, etc., a fim de detectar sujeiras ou contaminações.

Continuava a sua vidinha, assim aporrinhando a paciência dos outros, quando, no exercício de suas funções de fiscal do IBAMA, teve que viajar para distante lugarejo a fim de vistoriar uma área de terra supostamente devastada pelo desmatamento ilegal.

A área que deveria vistoriar ficava muito além da sede do lugarejo e depois de muitas horas de viagem no lombo de um cavalo, Manoel sentiu que estava perdido. Deu meia volta, mas não conseguiu reencontrar a trilha por onde viera. Depois de muitas horas, percebendo que estava andando em círculos pela mata e tendo caído a noite, resolveu apear numa clareira, onde agasalhou-se para dormir.

Uma sede intensa o dominava e ele procurou em vão por um riacho, um córrego ou um pequeno veio de água onde pudesse saciar a sua sede. Rezou por uma chuva, mas ela não veio.

No outro dia, reiniciou a viagem, mas, depois de várias horas, não encontrou nem casa nem viva alma pelo caminho. Fazia mais de 24 horas que não comia e nem bebia, mas a sede era muito mais torturante.

Finalmente, lá pelas quatro da tarde, avistou uma casinha de taipa, coberta de palha. Bateu palmas e uma velha, desdentada e vestida de molambos, apareceu. Manoel falou:

- Minha velha, estou perdido, não acerto com a estrada para o povoado.

A velha deu uma risadinha, uma cuspidela no chão, e informou:

- Mas desse jeito o senhor nunca vai chegar lá. Tem que voltar, ladear aquele morro acolá e pegar uma estradinha à esquerda. Daqui para o centro são umas vinte milhas.

- Vinte milhas? Meu Deus, mais cento e vinte quilômetros de estrada!...

Se o aspecto da casa e da velha não fossem tão repugantes, Manoel de bom grado pediria uma hospedagem na cabana para recuperar as forças. Mas como, pela cuspidela da velha, já tinha percebido que ela mascava fumo de corda, só teve coragem para pedir:

- Por favor, pode me trazer um copo de água?

A velha foi lá dentro e retornou com uma caneca velha e encardida. Pelo visto, aquela caneca já tinha atravessado gerações!... Passou-a para Manoel que a segurou com uma expressão de nojo. Mas a sede era incontrolável! Examinando melhor a caneca, Manuel observou que uma pequena parte da boca estava quebrada em forma de “v”. Raciocinou rápido: “Com certeza, essa velha nojenta não bebe água por este lado quebrado”. E sorveu o líquido através do beiço quebrado da caneca.

Saciada a sede, Manoel agradeceu à velha e preparou-se para partir, mas estranhou, porque a velha estava rindo a bandeiras despregadas.

- O que foi? Por que está rindo assim?

- Porque o senhor tem a mesma mania que eu.

- A mesma mania? Qual?

- Eu também só bebo água nessa caneca pelo beiço rachado! Há!Ha!Ha!

Santiago Cabral
Enviado por Santiago Cabral em 23/01/2007
Reeditado em 19/12/2008
Código do texto: T356491
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