ADÉLIO E ADALBERTO - Era para ser um conto de terror...
Não era uma noite fria e tempestuosa. Muito pelo contrário, era uma daquelas manhãs de inverno perfeitas como só Curitiba tem. Céu extremamente azul, um vento frio soprando devagar e constantemente as dez da manhã de sábado. As ruas lindas de pedras negras do Alto São Francisco totalmente silenciosas, desertas, armazenando
o calor suave do Sol. As folhas dos Salgueiros na Rua Benvindo Valente, próximos a entrada lateral do Cemitério Municipal...
- Peraí, você falou que ia contar uma história de terror!
- POSSO CONTINUAR?
- Tá...
... as folhas dos Salgueiros brilhando, conversando entre si e emitindo o único som audível de todo bairro São Francisco, de toda Curitiba, talvez de todo o Mundo, três semanas após o Apocalipse Zumbi.
- Tá bom agora???
- Ehehe, agora curti...
***
Sentado no alto do muro do cemitério, Adalberto esticava o pescoço tentando enxergar a torre da Igreja das Mercês lá longe. A vista dali era ainda mais linda que o próprio bairro. Atrás de si ouviu o barulho da porta na casa do vigia do cemitério. Sabia que era Adélio indo ligar a televisão novamente.
- Déeeeelio?!
- Ãn?
- Ligou?
- Não! Agora acho que os novinho cortaram a luz de vez...
- Meeeenos mal. Essa coisa só ligava aquele video-cassete e só passava aquele filme porquera que ensinô porcaria pros novinho.
- DVD Dalberto, chama dvd...É... piazada dos inférno, só aprende o que não presta.
- Larga isso aí então, sobe aqui, a vista tá bonita hoje. Sobe aqui pelo lado, tem a escadinha. Cuidado côs pé Délio, olha os pé Meudeusdocéu...
E usando uma escada lateral, desajeitado mas persistente, Adélio subiu no muro e sentou-se ao lado do velho amigo.
- Ahh Délio, então, os novinho ficaram vendo isso, agora ficam tudo fazendo igual. Como chama essa joça?
- Varquim dédi.
- Isso, Varquim Dédi... Em vez de ir pros baile de noite, ficam vendo isso e agora acham que é bonito imitá.
- Mas é coisa de piá imitá a televisão, Dalberto. Veja nóis, no nosso tempo não tinha essas porquera na tv pra imitá, o que a gente fazia? Quaaaantos ano a gente sai Dalberto? Quantos ano a gente passeia, até nos baile da Sociedade Primavera nós ja fomo disfarçado. Pra que isso agora de imitá a tv? É coisa de piá, acho que nós temo é que relevá...
- Sabe o que é? Me incomoda esses novinho, sabe? Ficam fazendo barulho de arroto, virando cos zóio estalado olhando pro nada, bando de piazada sem educação. É o que cê disse: A televisão que ensinou porcaria e não dá nem pra corrigi os piá na cinta. Dia desse eu peguei um arrotando e babando na frente de uma mocinha. Carnuda ela até, viu? Gritava que era uma arara... Daí tirei o cinto pra dá nele um corretivo e sentei o couro no lombo do bicho, caiu um braço do
desgraçado no chão. Pensa que ele juntô?? Nada... Largô o braço podre lá... Custava custurá de volta?? Quaaaaantas vez já custurei os meu? Piazada besta... Eu já acho assim, Délio: Custurô mais de três vez e continua a caí, acostuma sem. Eu sô moderno mesmo!
- Vai vê ele já tinha custurado outras vez e tornô caí.
- É nem... São uns relaxado mesmo esses novinho. Tudo maltrapilho.
Precisa sê assim? E eles nem vão consegui se acostumá sem os braços, vão tudo morrê de fome isso sim. Acostumá sem braço é uma arte Délio, braço é importante.
- Más braço, né?
- Braaaço, importante.
- E orelha?
- As tua são de abano, se caí é a natureza embonitando o rascunho do capeta!
- Más vá!!
- Hehe Délio, orelha não tem serventia e não tem gosto tamém.
- Pé.
- Más vai falá o que dos pé agora?? Aliás, Véio Adéio, ajeita essa porcaria que já encaixô pra trás de volta. Me irrita esses “créc créc” dos teus osso e se eu quisesse amigo Curupira ainda morava lá em Colombo! Isso sem contá quando cê pula os muro por aí e perde os pé. Ahhhhhhh, más me dá nos nervo!!
- E o resto das coisa que balança na gente?
- Ah, más Délio, os teu balançava antes?? Ahahaha, se não balançava antes não tem perigo de caí depois de podre. Nessa vida Véio, só cai o que um dia subiu ahahaha...
- É NEM DALBERTO! É nem! Seu Podre dos Inférno... Fedido...
- Meu último banho foi que nem o teu, na maca. Fedo que nem ocê!
- Defunto chupeta...
- Pois eu fedo menos que aquele ali que passô correndo e ele tá vivo, ói, ói a agilidade do guri... Tem saudade de corrê assim Délio?
E ambos olhavam ali do alto do muro o menino punk, que veio subindo apavorado pela Trajano Reis, passou pela tropa de zumbis imundos e famintos da Praça do Gaúcho, correndo agora feito louco entrando na Benvindo Valente. Passando desesperado pelo muro, viu os dois sentados no alto e gritou com toda força de sua vida:
- Me ajudeeeeeem!!!!!!!
- Más Deééééz conto de réis pela tuas tripa!! Cê não vai acha oferta melhor! Aahahahaahah
- Dalberto! Coitado do piá!!
- Coitado é filho de rato que nasce pelado no meio do mato! Más até que ele é fortinho, né? Ói, ói lá, pegaram... Carnudinho, né?
- Tá me dando fome.
- Tamém.
- Será que a porta do Açougue do Tobias ainda tá aberta?
- Vamo subi lá vê. Não vô disputa esse aí com os novinho zarolho arrotão. Fazem uma lambança dos Inférno. Lá no Tobias a carne é lavada...
- E tem tripa.
- Ôôôô lá em casa! As tripa... me lambo. Vamo subi lá, comê que nem uns loco.
E ao pularem do alto do muro ouviu-se o som seco de sacos podres de estopa caindo no chão, e o velho barulho irritante dos pequenos ossinhos de Adélio...
- Déeeeelio!!!!!
- Ãn?
- Pega o pé... Más Meudeusdocéu...
***
- E aí?
- É... massa. Mas ainda prefiro Walking Dead. Vou ali pegar pipoca, já volto.
- Ei?!
- Hã?
- PEEEEGA O PÉÉÉ...