UM DEMÔNIO NO BECO DO GABIRU



Todo mês era a mesma coisa:

_Ô mulé assim não tem dinhero que chegue, não. Que tanto de pó de café! E pra que tanto açúca? Num faz mais garapa não, garapa só presta pra dá lombriga! Tem que tirá da fera, quarqué coisa, pro modi o dinhero dá pra pagá.

Bia que já estava por conta, mas não dava conta de ajudar nas contas, respondeu resignada, com jeitinho de interior:

_Tá certo homi vamo vê o que dá pra tirá. A garrafa de pinga...

_A pinga não! Gritou enfezado o Tonho papudinho, eu só tomo duas lapadas por dia, uma antes do almoço pra abrir a fome, e outra a noitinha.

Bia, que já se acostumara a ver o marido chegar em casa muitas vezes, trocando as pernas, como se andasse em corda bamba, pois fazia tempo que tonho não conseguia, se equilibrar sobre as próprias pernas, daí o apelido Tonho papudinho, falou:

_Já que a pinga é receita, vamo tirá o fumo de rolo...

_Mulé tu tá mangando deu? O fumo de rolo, é um taco de nada, que levo pra mascar e pitar a noitinha enquanto cismo, esperando o sono!

_Oxe! Tonho...

_Tu tá beba ô tá doente? Nem o fomo nem a aguardente, vamo tirá a lavanda e a banha de mutamba.

_ Oxente! A lavanda e a banha de...

A coitada nem acabou de falar, vencida pelo poder do dinheiro e pelo severo olhar do marido, calou-se.

No mês seguinte...

_ Bia pega a sexta e o balaio vamo fazê a fera. Bia se animou, desta vez, ela não ia desistir, sonhou a semana toda com um corte de pano, a tempo não fazia um vestido, também vira uma linda marrafa preta, estava cansada de trançar os cabelos e amarra-los com uma embira de pano.
No entanto bastou abrir a boca e expressar a sua necessidade, que logo ouviu do marido o costumeiro não.

O quê? Tu come vistido? E marrafa? É pra comprar o de comê, teu vistido ainda tá novo! Remudela ele! O dinhero tá pouco, dá pra levá não! E mais uma vez, Bia vencida sob o peso da humilhação, caminhou cabisbaixa em direção a tosca casa, a sua frente o marido levava sobre a cabeça o balaio abarrotado de coisas, e sob o forte sol ela viu o reluzir da garrafa de pinga. Bia, engoliu a saliva quente e amarga da frustração.

A partir desse dia Bia ruminou dentro de si o desejo de dá o troco ao marido, que lhe tirava os pequenos afagos, e não respeitava a condição de mulher, lhe roubando o direito de ser feminina.

Depois de muitas tentativas, nenhuma ideia lhe parecia boa, já estava desistindo do intuito, quando o Tonho, lhe fez mais uma desfeita, desta vez o prejuízo moral e material lhe causou imensa tristeza.
De repente lhe surgiu na mente, um plano bom por demais, foi então ajeitando dentro de si, os detalhes de sua desforra.

Todo mês no dia do pagamento, Tonho papudinho, ao retornar do trabalho a noite, passava pelo beco do gabiru, beco extremamente escuro, e se reunia na venda do mesmo nome, com os seus colegas de copo para torrar metade do salário, a essa reunião dava-se o nome de sindicato dos papudinhos, essa reunião era sagrada!

Sabendo disso, Bia, separou uma calça e uma camisa do marido, sujou as peças com carvão e pó de enxofre e vestiu, jogou sobre os ombros uma velha capa preta, prendeu os negros cabelos sob um chapéu de palha de longas abas, passou carvão em seu rosto, e saiu para por em prática sua vingança.

Mulher de coragem, casada com Tonho, tinha que ser, entrou no beco, encolheu-se toda num canto, de onde podia ver nitidamente sua vítima, e aguardou: Pé no mato, pé no caminho, vinha Tonho. Bia encheu os pulmões de ar, e quando Tonho quase pisa no seu pé, Bia levantou-se abriu os braços com a capa figurando asas e modificando a voz o máximo que pôde, urrou igual diabo no inferno:

COOORREEEE! Com o susto, Tonho paralisado se cagou todo! Ouvindo o barulho do "motor", e sentindo o odor peculiar Bia urrou mais alto ainda: Ou corre, ou caga, se corre, não caga, se caga, não corre, se caga e corre, PÁÁÁGÁÁÁ!!!

Tonho, correu tanto que o pé bateu na bunda, e ele não largou pelo caminho apenas bosta, largou também a carteira com todo o pagamento, que é claro, a Bia confiscou, felicíssima.

Dizem que Tonho ficou gago, que chegou na venda todo cagado, dizendo que viu um demônio no beco do gabiru, ninguém mais passa por lá sozinho, e o Tonho cada vez que se lembra do acontecido, se borra todo! Apoi, viu?


Lapada=Gole.
Gabiru= Ratazana.
Beco=Caminho estreito.
Embira=Fibra extraída de algumas cascas, usada na fabricação de barbantes, ou cordas, aqui porém, se entende como sinônimo de fita.
Pano=Aqui se emprega, no sentido próprio, tecido.
Mangando= caçoando.
Remudela= O correto é remodela, re+ modelar, refazer modificando.
Papudinho= pinguço, cachaceiro, bebum...
Garapa=Qualquer mistura de água, açúcar e fruta. Refresco.
Taco=Pequeno pedaço.
Marrafa=Tipo de pente, usado para prender o cabelo.
Apoi viu?= É apoi viu, mesmo.



VERAYEVA LUCENKA, Ministra do Direito à Liberdade do Reino De Gorobixaba. Decreto: Todos Livres!