SOTURNO




SOTURNO



Minha mãe morreu, como ela pode me deixar sozinho, eu que fiz tudo por ela? Vivi com ela por toda a minha vida, hoje tenho cinquenta anos, trabalho em uma empresa de telemarketing, meus cabelos estão brancos, me transformando em um velho por isso não gosto deles brancos. Se eu pinto o cabelo? Pinto sim, quase todo mês, muita gente me acha esquisito, mas não sou, outros acham que sou gay, a verdade é que nasci hétero e delicado, homem educado que se veste bem é confundido com viado.

Quando era jovem fui vidrado em uma menina de nome Márcia, ela era minha vizinha, tinha cabelos pretos e olhos grandes, quando disse que queria namorar com ela – isso, meus amigos, foi o meu máximo esforço, quero dizer para vocês que tive que sufocar a minha enorme timidez, minha falta de tato e meu embaraço com mulheres.

Sabe o que ela fez? Deu uma gargalhada, parecia uma bruxa gargalhando roubando a minha alma romântica, ela disse: “ você Olavo? Namorando, achei que fosse gay, me poupe”.

Um gosto amargo subiu pelo esófago e chegou na boca como fel, depois da desilusão desisti das mulheres, sentia a dor daquela gargalhada toda vez que olhava para uma mulher que me interessava.

Trabalho de sete as dez da noite, sei que o leitor pode achar que pareço ter uma vida miserável, mas para mim é maravilhosa, faço hora extra, pois é o trabalho que dá sentido a minha vida e o jazz, é claro

Adoro conversar com pessoas desconhecidas, completamente desconhecidas, sem ver as suas caras, quero apenas escutar a sua voz, acho que você leitor nunca prestou atenção na suavidade da voz, ou no timbre estridente de voz masculina quando o celular não funciona, na agressividade,na voz amena agradecida e outros tantos tipos que me apaixonam.

É a voz que me encanta, ela está escondendo um rosto desconhecido, em minha imaginação fértil posso fazer o personagem que quiser, mudar a minha voz, para que pareça mais sério ou mais alegre, triste e depressivo, fico imaginando, se é com mulher que converso, penso como está vestida, se está pintada, se é gorda ou magra e o que ela pensa de mim, se sou bonito, feio, gordo, alto, depois dou um sorriso, para elas sou apenas uma voz, muitas vezes máscula e impetuosa como um galã.

Procuro ser o mais cordial possível, tento realmente resolver os problemas do telefone da cliente, uma pessoa, muitas vezes truculenta, que me confunde com a grande Empresa para a qual trabalho, grita tanto que tenho que tirar o fone, isso me diverte.

O sábado é inteiro para o jazz, disco de vinil, adoro vinil, procuro por toda a cidade, tenho centenas, há muito mais para “garimpar”, lista dos meus musicos preferidos: Jerry Cigler, Angelo DiPippo, Dominic Frontiere, Richard Galliano,Tommy Gumina, Sam Incopero, Don Komar, Frank Marocco, Mat Mathews, Ronnie Moon, Sivuca, Art Van Damme, Astor Piazzoll.

Cinema e televisão só se for musicais.

Leitura até que eu gosto um pouco, mas minha cabeça divaga, perco o assunto e acabo ficando infeliz com a narrativa, não gosto de livros de mistério, nem de romances, odeio clássico da literatura, os livros que me interessam são sobre viagens e jazz.

Se eu gostaria de viajar? Tenho medo de avião, de avião não, de altura e não conseguiria ficar nenhum dia fora da minha rotina no trabalho, como disse meu trabalho é tudo, o único lugar que gostaria de ir é para Nova Orleans, mas sofreu uma catástrofe e tenho medo de ir lá .

Segunda feira, meu dia predileto, faço um café bem quente e levo em uma garrafa para o trabalho.

Aquela segunda feira foi diferente, tinha que ser, era aniversário da minha mãe, sempre alguma coisa terrível acontecia.

Fernando Mendes um dos gerentes estava na minha cadeira, rodando como uma criança,  pra lá e pra cá, eu achei esquisito, mas parei e fiquei olhando com cara demente, junto ao peito eu segurava a garrafa de café, umas rosquinhas e uma revista de viagem, estava de fone e escutava Frank Marocco .

-Olavo? - disse estendendo a mão.

-Dr. Fernando Mendes – apertei a mão suada dele e tirei o fone– algum problema, fiz alguma coisa errada?

-Nada disso meu querido – aquele querido reverberou falso no meu pavilhão auricular coberto por uma cabeleira cuidadosamente pintada de negro e cuspindo as palavras através do bigode continuou - vim convidá-lo? Olha a sua importância! Eu vim pessoalmente para anunciar a sua promoção a gerencia de pessoal, quer dizer, desse pessoal – apontou ao redor fazendo um circulo com a mão.

Promoção! Fiquei apavorado, mas quem disse que eu quero uma promoção?

-Promoção, o que houve com o Varlei, ele parecia tão bom, um chefe atencioso? - eu disse assustado colocando as coisas em um cantinho da mesa.

-Merda, eu saio do meu confortável escritório venho aqui te dar o lugar dele e você o que faz? Elogia o puto do Varlei, de que planeta você é Olavo? Atencioso o cacete, demiti o Varlei, fala nesse nome na minha frente novamente e mando você embora, demito sumariamente – disse olhando de lado, aquele olhar piscado de quem não te encara, tamborilava os dedos e continuava falando – aquele traíra, filha de uma puta, falou de mim para o patrão, o diretor geral George Dantas, só que ele esqueceu que sou primo do patrão e essa coisa de parentes é forte na empresa, sabe como é? Sou parente, vocês antederam? – disse sorrindo e olhando ao redor.

-Por que eu? Há tanta gente competente aqui, não quero arrumar inimigos pegando o lugar de outra pessoa– disse buscando uma saída para não perder a minha mesa e a minha conversa diária com os clientes, para falar a verdade , nem preciso do emprego, minha mãe deixou umas casas de aluguel, gosto de falar com os clientes, amo aquelas vozes anônimas, esse é o motivo de trabalhar na Empresa.

Fernando era gordo, tinha dentes disformes, os da frete eram pequenos, os do lado grandes, parecia o sorriso da Xuxa em caricatura, os dentes feios e amarelado pela nicotina ficavam escondidos pelo bigode.

A única pessoa do planeta capaz de ascender um cigarro em uma sala com ar-condicionado e carpete, Fernando era um fumante das antigas.

Com ar desconfiado ele não me olhava de frente, acho que não olhava ninguém de frente, você já conheceu pessoas assim, que te olham de lado, tem medo do que está por detrás dos seus olhos.

De minuto a minuto acertava o cinto, que segurava a barriga gigante no ultimo botão. Fernando mexia a língua, levava a mão no órgão sexual e depois no bigode, repetia isso tantas vezes que deixava qualquer um tonto. O conjunto de sua aparência fechava com uma papada e uma careca de padre que tinha uma mancha vermelha no centro, dava nojo de olhar, parecia um câncer de pele.

-Boa pergunta – Fernando disse, me tirando das divagações mentais, mexendo na minha mesa, o toque nas minhas coisas estava aumentando mais ainda o meu nervosismo – você é o filho da puta do funcionário padrão daqui, poderia dizer que esse departamento não funciona bem sem a sua pessoa, nunca vi chegar atrasado, sempre trabalha até depois do horário, furou a greve, aquela de 2005, você é odiado – deu uma gargalhada - essas são as características de um bom chefe de pessoal?

-Não, está enganado, olha a Rose? Quem sabe? Ela já ficou de chefe interina uma vez, eu nunca fiquei – disse olhando para a senhora magra e de óculos que tinha três anos de firma a mais que eu.

-Nem sei quem é Rose! Você tem um parafuso a menos? O salário é o dobro e você não faz nada – ele me olhou de lado, sorriu e apontou a caneta para mim – humildade, gosto disso – como uma arma continuava a apontar a caneta na minha direção, após limpar o ouvido com ela, aquilo foi nojento o suficiente, em outra ocasião menos dramática teria vomitado, mas ele era o meu chefe, então segurei o vômito.

Ele continuou falando - olha Olavo, já assinei um bocado de horas extras no seu nome, tenho centenas de elogios por escrito na minha mesa, acho que você é o cara certo, um pouco feio! Isso é verdade, acho que você ficaria melhor com um bigode igual o meu – passou a mão no bigode.

“Isso seria um bigode bom, um gerente não pode ter a aparência de viado, de bixa, digo, homo( nada contra, até tenho um primo gay), sua aparência é péssima com esse cabelo pintado.” – Com certeza duas ou três pessoas riram da situação, eu estava preste a entregar minha alma para Deus, pedir desculpa para minha mãe e matar o desgraçado com minhas próprias mãos.

O pânico virou um embrulho no estômago e vomitei o café com rosquinhas no paletó de listras dele.

-Merda, que é isso? Você vomitou em mim? – disse enquanto ia limpando o vômito com a minha toalha de rosto, com a voz arrastada pelo nojo completou – amanhã você começa, hoje tire o dia de folga, Jesus Cristo! Que vômito fedido, espero não me arrepender.

Um dia inteiro de folga, e o que eu vou fazer, sentei em um banco e comecei a chorar, meu choro alternado com soluços.

Enxuguei as lágrimas e tomei uma decisão importante: tinha que falar com a minha mãe, ela saberia como conduzir aquela situação, mas o problema é que ela tinha feito o favor de morrer.

Fui até o cemitério e passei a gritar perto do túmulo dela, chorava e pedia ajuda, dizia em voz alta:”o que eu ia fazer com aquela promoção, bla,bla,bla”. Dois coveiros ficaram me olhando, então pude entender que o cemitério é um lugar de solidariedade e onde a bondade humana está a flor da pele.

Ao me ver chorando uma menina me abraçou, logo depois foi um senhor de cabelos grisalhos que disse também sentir falta da esposa.

-Ela é sua esposa?

-Não é minha esposa, ela é minha mãe - dei um empurrão no velho que ele quase caiu. Saí do cemitério e fui até a lanchonete que ficava perto de casa, pedi um capucino e duas rosquinhas, comecei a comer e pensar: “o que vou fazer, eu não consigo decidir sozinho, minha mãe não dá uma luz no meu pensamento”.

Na vida moderna não estamos sossegados em lugar nenhum, tem sempre alguém entregando panfletos, um rapaz me entregou um que estava escrito: ”Mãe Salamandra-negra, joga búzios, segura homem, trás de volta o amor perdido e fala com mortos”.

Uma nova esperança surgiu, tinha que falar com a minha mãe, sem os conselhos dela diante daquela grande decisão eu estava perdido.

Li o endereço completo, chamei um táxi.

O táxi chegou.

-Para onde senhor? - perguntou o taxista com a voz sublime de narrador esportivo.

Entreguei o folheto a ele.

-Não obrigado, sou evangélico.

-O endereço, esse que está escrito no final do panfleto– ele levou, foi o percurso de táxi mais miserável que já tive, além de falar o tempo todo sobre Jesus, metralhou palavras  de desagrado a macumbaria, que ele chamou de coisa de Satã. Olha o meu azar! Com mais de cinco mil taxista, bêbados, drogados, fui logo escolher um fanático religioso.

Quando o táxi chegou ao destino, desci e prometi voltar de ônibus, pois se pegasse outro táxi e o taxista fosse árabe eu teria um colapso nervoso, ele poderia ficar falando de Maomé, além disso o táxi em que vim, veja só, o danado do taxista disse que só me levaria de volta se eu aceitasse Jesus, que ônibus por ali era difícil e que outro taxista não subia o morro, ele subia porque estava com Jesus.

Estava tão perdido que nem vi onde estava, sabia que era na periferia, mas nem sempre o que se vê com os olhos o cérebro entende, o local era triste. Casebres de madeira, gente amontoadas, cheiravam mal, tinha grafites satânicos, ou pornográficos nas paredes, crianças na rua seminuas, gente bebendo em bares e na rua, com certeza só vi gente feia daquele jeito nos filmes de John Carpenter .

O meu racional perguntou, assim lá no fundo.

-Por que só gente muito pobre fala com os mortos?

Meu irracional respondeu:

-A pior pobreza é a morte.

Vi a placa, o que me parece que eles fazem panfletos muito bem acabados, e placas horrorosas, feitas de papelão e escrito em português sofrível, estava escrito: “ Salamandra-negra lê búzios, fala com espíritos e vende picolé”.

Bati logo na porta pois se pensasse muito dava meia volta e ia embora. Um menino de sete anos me atendeu, tinha um caderno e uma caneta na mão, os olhos vivos e parecia muito esperto.

-Queria falar com um adulto da casa. - eu disse olhando para dentro da casa sem me importar com a criança

-Não pode falar comigo, sou o responsável, me chamo Roque – estendeu a mão pequena para que pudesse apertar - tem que me passar os seus dados e pagar antes, são duzentos paus a Salamandra-negra não faz fiado, é o quê: falar com mortos, búzios, namorada de volta? Picolé incluso?

Minha labirintite atacou e tive uma vertigem, quase caí, me segurei no portal, depois de ouvir o grito do menino parece que acordei, fui do purgatório para o inferno, como em Dante Alighieri.

-Mãe Salamandra-negra. – gritou o menino, apesar de minha cabeça estar estourando de dor - Tem um cliente aqui, acho que o santo “pegou” nele.

-Não, não – eu disse me recompondo – estou com vertigem, tenho uma labirintite grave, tomo remédios, mas se ficar nervoso ela parece piorar.

Salamandra-negra, uma mulher elegante, tinha olhos amendoados e usava um traje muito sensual, pensei que as senhoras que falavam com mortos fossem mais recatadas, com idade avançada e obesas, Salamandra-negra, se a encontrasse na rua a noite, certamente confundiria ela com uma mulher de vida fácil, vestia uma camisola transparente onde apareciam os seios caídos e a calcinha microscópica.

-O que deseja? - perguntou a mulher.

-Falar com a minha mãe – disse, mas arrependido e envergonhado – ela morreu ano passado, eu tenho uma dúvida sobre uma promoção e...

Ela abriu a porta e pediu que saísse.

-Pague ao Roque duzentos paus– Salamandra-negra disse e completou – sua mãe não quer falar com você, está com raiva, não disse o porquê, não pergunto, não me intrometo nessas brigas .

-Não é possível, como sabe disso? Só nesse minutinho minha mãe já te falou tudo isso?

-Ela me disse, no mundo espiritual rola um tempo diferente – pague ao Roque.

-Duzentos por uma informação que não é verdadeira, certamente não é, minha mãe sem falar comigo, duvido, isso é mentira. – disse olhando nos olhos de Salamandra-negra.

-Se não me pagar vou chamar o Carlão.

-Pode chamar quem quiser, não vou pagar, nem sei se o que me disse é verdade, estou aqui pronto para fazer um boletim de ocorrência, conheço os meus direitos de consumidor, eu trabalho com isso querida, se for necessário, quero alguma comprovação que falou com a minha mãe – engoli em seco – ela não quer falar comigo, uma barbaridade dessas? Isso só pode ser mentira, será que não é a mãe de outra pessoa?

-Carlão, tem um aqui que não quer pagar – gritou para dentro do barração. Quando olhei o Carlão meus esfincteres se liberaram, me caguei e me mijei todo e o fedor se espalhou.

-Que fedor é esse – disse Carlão – esse cliente se borrou todo.

Paguei rapidinho e saí correndo, estava envergonhado, Carlão tinha quase o dobro do tamanho do taxista, e estava armado, fiquei com medo de apanhar, saí correndo e quando vi não sabia onde estava, liguei para o taxista e disse que havia aceitado Jesus, só assim ele veio, me levou de volta e me deu uns trinta panfletos da igreja dele.

-Esse fedor é o mal saindo de você. Não falei, aleluia irmão, te espero no culto.

Abri a porta da sala, nove horas da noite caí no sofá e dormi alí mesmo todo borrado.

No dia seguinte seria o gerente, deveria ser por causa disso que minha mãe não queria falar comigo, ela sempre falou de humildade, dizia para nunca aceitar ser mais que ninguém, ela sabia que eu amava o meu emprego, não queria ser gerente.

Minha mãe me amava, não queria que eu casasse, pois se eu casasse quem tomaria conta dela? Mas agora ela não queria falar comigo, devia ser mentira da cartomante, só pode, quem acredita em uma cartomante que parece uma prostituta, quem?

Acordei com dor de cabeça e fedia a merda, tomei banho, joguei a roupa no lixo e depois o lixo fora. Agora o problema era que minha mãe, por que ela se negou a falar comigo? Isso não saía da minha cabeça.

No céu, provavelmente ela está no céu, com certeza, minha mãe era uma santa gente. Lá junto com os anjos ela disse que não queria falar comigo? Mentira.

Será que ela sabia da promoção? Só podia ser, minha mãe só deixou de falar comigo uma vez, quando namorei pela internet a Janine, ela disse que era imoralidade, quebrou o computador e fiquei sem internet por anos.

Procurei o telefone da cartomante, um tal de Roque que atendeu, perguntou se queria marcar uma hora, disse que sim, eu disse que precisava falar com a minha mãe novamente, será que ela me receberia, a dona Salamandra, afinal, demorei um pouco mas paguei, Roque disse sem ressentimentos, só que agora era trezentos paus e para mim não cagar novamente na frente do Carlão, que ele achou aquilo um desrespeito.

Cheguei na firma, Rose me recebeu.

-Ele mudou de idéia – disse olhando para mim – você vomitou nele, sabe como é, na frente dos outros, fez ele de lixeira, ficou puto.

-Ele vai me demitir? - Perguntei.

-Queria demitir você, mas não deixei, disse que você é o único que faz hora extra pela metade do preço e que o Varlei sabia disso. - Ela balançou a cabeça – mas não olhe nos olhos dele, quando passar perto de você – ela diminuiu o tom de voz para o cochicho e completou - ele disse que vai sentir o cheiro do vômito mais fedorento do planeta quando passar perto de você.

-Pode deixar – sentei na minha mesa e chorei de alegria.

Mas ainda precisava ir na cartomante, tinha que contar a novidade para a minha mãe, ou será que ela ainda não queria falar comigo. Acho que vou levar um celular de presente para Salamandra-negra, assim posso controlar a minha ansiedade e perguntar alguma coisa para a minha mãe com uma discada, ali mesmo da minha mesa querida.


FIM

 
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 09/02/2013
Reeditado em 03/09/2013
Código do texto: T4130718
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