ELIEZÉRIO, EU E UMA ESPINGARDA

-I-

De vez em quando Eliezério cansa do seu estafante e promissor comércio varejista de fumo-de-corda e sai a procura de novos horizontes.

Desta feita, não sei explicar como, ele comprou uma barbearia.

Um salão antigo e mambembe, com tudo o que é necessário para o desempenho da profissão.

Só tinha um senão.

Eliezério nunca cortou um cabelo na vida.

Para ele este detalhe não constituia problema:

____ Isto se aprende fácil!

A situação prometia.

Sentei numa poltrona do salão e finji folhear algumas revistas velhas.

Observo ele, de pé e atento na porta, braços enlaçados no peito.

De repente:

____ Moleque, quer cortar o cabelo?

____ Quero não!

____ Pago um real.

____ O senhor quem paga?

____ Pago!

O infeliz topa.

Coloca o menino na cadeira, cobre com o lençol, pega o aparelho manual, encaixa os dedos na manopla e fica examinando a questão.

Nem sabe por onde começar.

Principia por cortar de cima para baixo.

O garoto grita:

____ Ai, ai!

Com a mão esquerda ele segura firme o coitado na cadeira.

O menino berra e tenta escapar.

____ Assim você não ganha um real!

Termina depois de muita luta. Na cabeça do cobaia, caminho de rato.

Paga e o menino escafede-se.

Volta a fazer plantão na porta do estabelecimento.

____ Moleque, quer cortar...

A história se repete.

Quando está na quarta sessão de aprendizado a mãe do primeiro aparece com o filho a reboque.

____ Isto é coisa que se faça à uma criança?

____ Calma minha senhora. Ficou um belo corte e eu paguei para fazê-lo!

____ Pois vai ter que pagar para alguém consertar. O barbeiro da esquina cobra dez reais!

Para evitar problemas, paga.

No sexto ou sétimo menino começa a se formar na porta do salão uma pequena multidão de mães.

O concorrente, na esquina, esfrega as mãos e demonstra sinais de satisfação. Nunca deu jeito em tanto cabelo.

No final do expediente Eliezério avalia a situação.

____ Não sei se vou gostar deste ramo.

Volto no dia seguinte e encontro novo proprietário.

Eliezério trocou a barbearia por cinco novilhas, dois sarilhos de poço, uma bicicleta e uma espingarda.

-II-

Num certo natal da minha infância ganhei uma bola de couro. De capotão, como se dizia na época.

Mas queria mesmo era ganhar uma espingarda.

Eliezério resolveu o problema para mim:

____ Sei de alguém que quer fazer um rolo...

Conhecia um garoto que tinha uma espingarda, e que desejava possuir uma bola de capotão.

Fizemos negócio, com cláusulas verbais de quitação, irrevogabilidade, irretratabilidade e sem compensação de nenhuma das partes:

____ Na "orelha" e sem "mijar pra trás"!

Era uma espingarda "pica-pau".

Pequena, de carregar pela boca.

Colocavamos pólvora negra, depois pedaço de papel, depois chumbo, depois mais pedaço de papel. Socavamos tudo com uma vareta.

A espoleta era avulsa e se encaixava num orifício perto do cão, numa peça saliente próxima ao gatilho e do tamanho e formato de um bico de bisnaga.

Assim armados, saiamos com a espingarda pronta levando a reboque um renque de moleque.

Localizada a caça, um pássaro num galho ou uma preá numa palhada, a meninada ajoelhava e fazia silêncio.

Compenetrado eu fazia a mira, com Eliezério palpitando ao meu redor.

Puxava o gatilho e ...

Bem, o problema é que havia todo um processo antes do efetivo disparo.

Comprimido o gatilho o cão batia na espoleta que explodia com um barulho seco, semelhante ao tiro.

Pam!

Neste momento a caça desaparecia.

Depois havia um chiado. Shiiiiii... enquanto a espoleta acendia a pólvora, para só depois, dois ou três segundos depois, disparar a carga de chumpo e de papel estilhaçado para todo lado.

A molecada fazia uma tremenda algazarra, saltitando entre os papéis picados que pareciam confetes e ficavamos todos com a cara suja de fuligem da pólvora negra e vagabunda.

Que eu lembre, nunca matamos uma caça.

Cansados dos fracassos passamos a praticar em mamão verde, que tinham a vantagem de não sair correndo do lugar.

Jeitoso, Eliezério achou uma maneira de desfazer o negócio.

Voltamos a jogar bola e aprendemos, para o resto da vida, que palavras como quitação, irrevogabilidade e irretratabilidade são despidas de qualquer significado sério.

Crescemos e lemos "Sidartha", do qual Eliezério tirou a conclusão de que para ser feliz não há necessidade de se preocupar e desejar muito neste mundo.

Desculpa de monge que ele utiliza até hoje para justificar seu desinteresse pelo trabalho e pelas coisas materiais.

Eu andei bastante, desejei muito e por fim concluí que Hermann Hesse e Eliezério é quem têm razão.

-III-

Quarenta anos depois, por causa do negócio da barbearia, tinhamos novamente uma espingarda.

Eliezério, louco para usar o novo brinquedo, arrumou uma caçada.

____ Vamos comer codorna à passarinho!

Andamos por campos de sorgo, morenos à perder de vista.

Por capoeira, pasto, milharal e lavoura de arroz.

Nada de codorna e nenhum tiro disparado.

Com a tarde morrendo chegamos a um brejo, onde deparamos com a bucólica cena de um velho burro a pastar lângüido e satisfeito.

De especial, um anú preto empoleirado nas costas à cata de carrapatos.

____ Vou matar o anú !

Antes do meu protesto, aperta o gatilho.

O tiro acerta a testa do burro que, sem esboçar reação, deita morto.

Cumpriu o seu destino de servir ao homem.

No caso, se prestou a criar problema.

Eliezério, vexado, coça a cabeça.

____ Melhor falar logo com o dono.

Margeando o barranco subimos por um caminho sinuoso.

Eliezério escondendo a espingarda com o corpo.

Encontramos uma casa no topo, em cuja varanda um homem, recostado na espreguiçadeira palita o dente com cara de poucos amigos.

Eliezério, autor do burrocídio, vítima única da famigerada espingarda, comanda a negociação:

____ Aquele burro lá em baixo é seu?

____ Meu!

____ Quer vender?

____ Não!

____ Pago bem.

____ Vendo não!

____ Pago mais do que ele vale.

____ Mas que diabo este interesse pelo burro!

____ Bom, então, até logo!

Em casa, por falta de codorna, comemos pão com sardinha.

Mais tarde, Eliezério aboleta-se na sua motocicleta e antes de desaparecer na estrada pede:

____ Cuida do meu comércio, preciso ver uns parentes em Santópolis.

Eu fico ali com o problema na mão.

-IV-

Só depois que estamos no meio do rio é que percebo, no piso do bote de alumínio, a espingarda escondida entre as traias de pesca.

____ Isto dá problema com os homens!

____ Eles não batem por este lado.

Dia clareando, lindo, sol, céu azul e o Tietê imenso, maravilhoso, como ninguém é capaz de imaginar que ele possa ser depois de vê-lo poluído em São Paulo, pelo desenvolvimento, flagelo de nosso tempo.

Majestoso, invade o interior, cria vida, irriga e vem lamber as terras de Araçatuba, como amante carinhoso e apaixonado.

Ao sol do novo dia, reflete as primeiras luzes e o rio se transforma em uma longa fita de fogo.

Durante toda a manhã pescamos alguns tucunarés de bom tamanho, por meio de lançadas, com molinetes e iscas artificiais.

Por sorte, nenhuma caça.

Ao meio dia voltamos, Eliezério no comando, chispando o motor.

De repente, uma pequena cabeça aflora n'água, nadando em direção ao barranco alto.

____ Uma capivara!

De imediato ele abandona o piloto e pede que eu assuma a direção.

Justo a mim, pacífico cidadão arriado tranqüilo na proa a apreciar a paisagem.

Ele salta em busca da espingarda.

Eu atravesso de gatinhas o bote em movimento e sem comando, veloz, qüicando por cima das ondas .

A capivara chega ao barranco e começa a subir, patinando assustada.

Tudo acontece ao mesmo tempo.

O bote sem rumo resvala na terra, Eliezério levanta o corpo e abaixa a espingarda, a capivara desequilibra-se e rola para cair dentro do barco.

Eliezério aperta o gatilho, bum, e cai de costas na água, levando consigo a arma.

O tiro abre um buraco imenso, quase do tamanho de um coco, no casco da embarcação.

Vamos a pique rapidamente.

Nado para a terra a fim de salvar a minha vida e, como no dia do meu enterro, levo comigo só a roupa do corpo.

Depois fico sentado, coração pulando no peito, a observar a cabeça da capivara que, ilesa, nada rápido para longe da confusão.

Amaldiçoo Eliezério que mergulha à procura da famigerada espingarda.

De joelhos peço à Deus que ele nunca a encontre.

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24-04-2007