Deu bode

Aqui no interior era muito comum se ouvir histórias de assombração principalmente na semana santa. Fantasmas, lobisomens, demônios ... Se faziam presentes no imaginário popular. E eu cresci envolvido nessas histórias. Minha avó adorava me apavorar...

Já adulto a semana santa começou a ter outro significado, eu apaixonado por teatro sempre me envolvia na peça da Paixão de Cristo. E eram meses ensaiando, mas sempre na semana santa tudo era mais complicado, apertado, difícil e era comum ficarmos até altas horas da madrugada cuidando da produção da peça.

Como era um evento religioso envolviam as igrejas católicas de toda cidade e numa quinta-feira santa estava eu do outro lado da cidade ensaiando e quase meia noite volto pra casa sozinho.

Depois de muito caminhar eu já estava no morro da matriz .A noite eu odiava passar perto dela por causa dos causos que meu pai e meu padrinho contavam da mulher de branco que aparecia lá , flutuando em volta da igreja, sem os lábios e com quase dois metros de altura. E eu subi o morro na maior pressa pensando na tal assombração.

Bem no meio do morro olho no relógio e era meia noite em ponto quando ouço atrás de mim um berro de um bode. Eu paralisei na hora. Eu pensava " É imaginação... É imaginação..." Mas não conseguia me mover. Sexta-feira da Paixão à meia noite, eu sozinho na rua e ouvindo um bode... Eu não sabia o que fazer. E lá parado ouço de novo o bode berrar. Eu arrepiava, eu não sabia se saia correndo, se olhava pra trás... E o bode berrou de novo.

No terceiro berro eu tive certeza que não era imaginação e uma tormenta mental passou pela minha cabeça, me lembrei de todos os pecados detalhadamente melhor que uma confissão. Eu pensava " Ainda bem que não comi nada senão tinha borrado as calças" E o bode berrou outra vez. Não sabia mais o que fazer, eu não conseguia correr e nem rezar e muito menos olhar pra trás. E eu lembrava da minha avó e pensava " O capeta veio me buscar"

E naquela indecisão, eu de olhos fechados no meio da rua engoli seco e resolvi virar pra trás e encarar o demo, a assombração... Com o coração quase saindo pela boca me virei quase como em câmera lenta pra encarar aquele espírito das trevas que me perseguia na sexta-feira da Paixão... Eu me virei mas me virei de olhos fechados e quando ele deu mais um berro abri um olho... Abri o outro e vi que não tinha nada atrás de mim.

Aí o pavor foi maior ainda, lutaria contra o invisível e as pernas bambas e o coração a mil quando veio outro berro e eu me virei para o lado... E lá estava ele... Parado me olhando e o suor em minha testa parecia uma cachoeira e com a respiração ofegante fiquei congelado olhando em seus olhos...

Ele me olhou e berrou de novo, depois abaixou a cabeça e encheu a boca de capim e ficou mastigando, parado. Nessa hora eu cai na real, fui me acalmando e olhando aquele bode... Bode mesmo, um animalzinho pastando em um lote vago que tem lá no morro da matriz. Ele amarrado com uma corda comia tranquilamente o capim... Aquele bodinho branco que quase me matou de medo.

Voltei pra casa aliviado e agradecendo à Deus e todos os santos pelo bode não ser o cão. Mas até hoje eu me pergunto o que fazia um bode naquele terreno berrando e comendo à meia noite da sexta-feira da Paixão...