Eu queria morar na República Tcheca
 
Uma vez, fui fazer uma palestra e, logo no início, falei que simpatizo com o Maluf e com o PT: o primeiro porque rouba, mas faz, e o segundo porque é corrupto, mas não privatiza.
 
Depois da enxurrada de vaias, cri que seria esta a minha única decepção. Encerrei o discurso, após cerca de duas horas falando ao público, e fui almoçar num restaurante da mesma rua.
 
Sentei-me à mesa aliviado com a santa paz. Precisava desfrutar do deleite de um prato que me aprazia pra compensar a sensação de solitude  neste planeta de pessoas às quais não apetece entender o universo além da circunferência rasa de um pires.
 
Um filé à parmegiana nadando no molho suculento não chegava nem próximo da satisfação pessoal de supor-me compreendido, contudo eu não estava em condições de exigir mais que isso... pelo menos na meia hora que viria a transcorrer.
 
Enquanto levava o talher à boca, minha brincadeira de fingir que o garçom era a minha babá foi interrompida de forma brusca por uma porrada na nuca que fez o garfo espetar o meio do meu nariz.
 
Era uma velhinha que me deu uma bolsada pra expressar o seu desprezo pela gentileza que os seres civilizados costumam ter. Ela assistira à minha conferência e levara, como os demais presentes, ao pé da letra o que eu disse, ignorando integralmente a gama de conceituações acerca de sentidos denotativo e conotativo, ironia, sarcasmo e todas as figurações diversas que a cabeça engenhosa que o Criador nos deu é capaz de arquitetar.
 
E eu que imaginava ser livre como uma águia, pairando sobre cérebros irmãos de caminhada, vi-me sozinho no calabouço da divagação.
 
Descobri que não podia usar e abusar da minha licença poética e que a raça humana é tão literal que seria bem capaz de crerem os mortais ser a República Tcheca o melhor lugar pra se viver.
 
Eu que não encaro esse destino cruel. Vou ter que me adaptar. Quero entrar na manada! Começo agora, pois:
 
Se eu fosse um país, adoraria ser a Eslováquia, pra ficar grudadinho, durante tantos anos, com a República Tcheca (como cantaram os Raimundos, nos anos noventa, fazendo uso de outras palavras: "Eu queria ser o banquinho da bicicleta…").
 
E por falar em música, o que significa “destilar terceiras intenções”, como disse Cazuza em “Codinome Beija-Flor”? Se destilar segundas intenções significa querer passear pela República Tcheca, destilar terceiras intenções seria almejar ir ao Kuwait?
 
Por outro lado, as mulheres, com certeza, preferem visitar o Nepal.
 
A capital da República Tcheca é Praga, mas as tchecas não são nenhuma praga. Muito pelo contrário.
 
Se não me deixassem ser a Eslováquia, escolheria ser a Polônia, que fica em cima da República Tcheca.
 
Ser a Alemanha, não seria ruim, mas o território da República Tcheca adentra o mapa alemão e eu preferiria adentrar a República Tcheca.
 
Como última opção, eu aceitaria ser a Áustria, porque ficar por baixo da República Tcheca também é bom.
 
Já ouvi dizer que as ucranianas são as mulheres mais bonitas do mundo, mas mesmo assim eu prefiro as tchecas.
 
O gentílico do homem natural da República Tcheca é tcheco (ou checo) e a mulher que nasce na República Tcheca é tcheca (ou checa).
 
As tchecas são maravilhosas, porém complicadas. Quando nós as namoramos e estamos gostando delas, elas sempre terminam o namoro. Até a Eslováquia se separou da República Tcheca.
 
Na verdade, nem consigo idealizar o que seria desfrutar um refúgio na República Tcheca. No momento, enxergo-me como um arrogante argentino, ao menosprezar, de modo zombeteiro, a inteligência do brasileiro médio, no miolo deste texto.
 
E, se continuar sentindo-me assim, superior como os Estados Unidos se acham, vou acabar totalmente isolado do convívio social, residindo entre os “muros” da Coréia do Norte, como se eu fosse um punk inglês perto dos playboys belgas ou um playboy belga no meio de punks ingleses.
 
E seria arremessado aos infernos da Síria pra arcar com as consequências geradas por minhas palavras tão lusitanamente proferidas.
 
Buscando ser eloquente como um grego e tagarelando mais que um italiano chato, acabo sendo grosso como um espanhol e fresco como um francês, correndo o risco de terminar, então, os meus dias, sonhando com uma vida que eu acreditava que era doce na Albânia do fim dos anos oitenta (propaganda enganosa da extrema esquerda) e viajando pra lá de Bagdá, ao ficar, inutilmente, desejando ser aplaudido pelo povo em virtude de uma boa sacada irônica que tive numa palestra que ficou em algum lugar do passado (graças ao Deus louvado na antiga União Soviética) até o Kuwait fazer bico.

 
Texto publicado na Revista Literária da Lusofonia – Décima Oitava Edição – fevereiro de 2016 – Páginas 39 e 40.
 
Marcelo Garbine (Mingau Ácido) – @mingauacido – mingauacido.com.br

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