LEMBRANÇA DO INÍCIO DO GOVERNO COLLOR 
Os dois cresceram ouvindo contos de fadas. Em 68 conheceram-se numa passeata. Vida dura, repleta de estudo e de movimento estudantil. Anos depois, passaram no vestibular da CESGRANRIO,muito concorrido, apesar do nome. Ele formou-se com sacrifício em Engenharia - estudava no Fundão, morava em Santa Teresa e não tinha carro. Ela, biblioteconomista. Casaram-se com amor e dificuldades. Compraram um apartamento razoável pelo BNH, no Flamengo e carro do ano no consórcio. Tiveram um, outro e ainda outro filho - duas meninas e o Júnior. Viviam o tal conto de fadas, certo, de olho no orçamento, porém, felizes. Os planos econômicos de estabilização da Nova República prejudicaram pouca coisa. Em 89, o over deu margem para trocarem a TV a cores, adquiriram um vídeo-cassete e curtiram duas excursões pela agência de um primo (quase foram à Argentina). Os dois profissionalmente sentiam-se seguros nas duas estatais (um em cada uma). No final de 89, uma pequena divergência surgiu entre o casal. Ele apoiou o Enéas e ela, o Covas, mas acabaram fechando com o Lula no segundo turno (sem muita convicção). Consideravam-se protagonistas de um conto de fadas ao vivo e a cores. Tudo ia as mil maravilhas, digamos 750 maravilhas.
Até que em 1990:
- Como já estavam cheios das filas para colocar álcool, venderam o carro no início de março – pretendiam comprar um a gasolina, mas terminaram a pé, porque suas contas bancárias, inclusive "o do carro" foram bloqueadas.
Então:
- O casal ficou duro. Ambos suspenderam a análise, bem como os almoços de domingo na churrascaria.
Para piorar:
- Foram obrigados a deixar o apartamento na Zona Sul, devido às enchentes e:
- Mudaram para o interior de Niterói (ali já foram assaltados duas vezes), onde o vizinho tem um cão barulhento, bebê chorão e ouve lambada o dia inteiro.
Durante a mudança:
- Ele passou sete noites fazendo a declaração de imposto de renda, para depois descobrir que preencheu e calculou tudo errado. Profissionalmente:
- A estatal em que ela trabalhava foi extinta. Agora ela procura emprego, qualquer um, desde que ganhe pelo menos trinta mil líquidos (procura e não encontra).
Já ele:
- Passou a ter como chefe um cara petista, que como sabia ter ele votado no Enéas, passou a persegui-lo.
E ainda por cima:
- Está ameaçado de ser transferido para Brasília (pode ser até demitido, pois está ocioso).
Procurando uma solução:
- Ele foi informado que seu amigo, político influente, em Brasília, deixou de ser influente.
Na vida particular:
- O casal descobre que os três, os três filhos, fizeram tatuagem e o Júnior, que está usando brinquinho:
- Passou a ter trejeitos e modos estranhos e diz que quer ser ator. Deixou definitivamente o caratê.
A filha mais velha:
- Está com uma proposta (não muito alta) para sair pelada em uma revista.
A outra:
- Está pensando em se envolver num escândalo para virar notícia e ser também convidada para posar nua com a irmã e uma amiga em cenas comprometedoras.
Isto tudo sem considerar que:
- A esposa, descobriu que o marido tem uma amante e ele, que a amante teve um envolvimento com um cara que morreu com suspeita de AIDS. Para evitar um desentendimento maior, o casal:
- Resolve ter uma conversa franca. Ela fala que não está suportando o chulé dele e ele, o mau hálito dela. A essa altura:
- A auto-estima dos dois está mais do que abalada. Ela está pesadona, embuchada e cheia de enxaqueca. Ele, bem careca, com stress e barrigudo.
MAS:
Sendo protagonistas de um conto de fadas - a foto do casamento deles não deixa mentir - podem não estar lá vivendo muito felizes, porém, sabem que a vida vai mudar e vai começar a mudar já. Os dois, animados, abrem uma cerveja e ligam a TV. Tem início a partida pelas quartas de final da copa do mundo de 90 - Brasil X Argentina. (Agosto de 1992)
Karpot
Enviado por Karpot em 09/02/2015
Código do texto: T5131188
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