TROPELIAS DO SOLDADO MALAQUIAS
 
 
Malaquias namorava há alguns meses com a Adélia e sempre que se atrevia a algo mais que simples beijos, ela reagia mal, por vezes de forma intempestiva. Ele então jogava com o fator tropa, pois estava a cumprir serviço militar no quartel da cidade e um dia iria embora sem que ambos tivessem provado as delícias do amor. Por culpa dela, acusava. Malaquias dizia-lhe que miúdas disponíveis não faltavam, deixando-a ansiosa. Então, ela logo se arrependia, assustada com a chantagem dele e medrosa de o perder.
Um dia ele tomou uma decisão radical, iria o mais longe possível. Para tal, desafiou-a a recebê-lo no seu quarto, em sua casa. Sabia que ela morava num primeiro andar e seria impossível entrar de dia pela porta principal, os pais estavam quase sempre em casa. Ela tremeu como varas verdes perante a perspetiva, mas as hormonas falavam mais alto e Malaquias, convincente, não era homem para desistir à primeira. Continuou a estudar o processo, analisando a localização do quarto dela, que tinha varanda e então reparou no algeroz que passava ao lado da dita varanda, a cerca de meio-metro. Se ele fosse robusto, não seria complicado de escalar. Depois só restava ela abrir-lhe a janela e demonstrar-lhe todo o seu amor.
Conversando com Adélia, assegurou-lhe que seria fácil aceder à varanda e desde que não fizessem barulho, não teriam problemas em passar algum tempo na mais doce paixão…
Chegou o dia marcado e Malaquias passou-o num grande estado de nervosismo. Adélia também sofreu de grande ansiedade orando para que o relógio acelerasse a sua marcha temporal.
Por fim, era quase meia-noite, a rua onde ela morava estava totalmente silenciosa, tudo dormia.
Malaquias esteve algum tempo espreitando e depois deslizou junto das paredes das casas, protegido pela pouca iluminação pública. Lamentou a falta de luar, que poderia dar-lhe maior visibilidade para a fachada da casa da sua amada, mas depois considerou que também poderia ser negativo pois ficaria mais visível perante olhares indiscretos dos vizinhos.
Chegou junto da frente da casa e postando-se ao lado do algeroz, testou de novo a sua robustez. Já o havia feito antes mas fora de dia e de forma disfarçada.
Malaquias decidiu-se e num impulso começou a amarinhar, subindo lentamente. Chegado quase à altura da varanda, percebeu que a robustez do algeroz não era muita, abanando perigosamente conforme avançava. Deitou a mão ao parapeito de madeira e galgou-o rapidamente ao mesmo tempo que uma parte do algeroz se deslocava do seu apoio, ficando solta.
A janela estava meio aberta, ele empurrou-a fazendo um chiar bastante pronunciado. Adélia estava mesmo ao lado e fez-lhe sinal para que não fizesse barulho pois o pai tinha o sono leve e ainda por cima dormia sempre com uma espingarda caçadeira ao lado da cama.
Ela abraçou-o e ele sentiu o coração a mil, Adélia estava quase despida, convidativa, meiga e terna como sempre. Excitados, caíram sobre a cama, que rangeu perante o peso inusitado. Ela tremia, ele também… Beijaram-se, rolaram sobre a cama, que rangeu de novo. Pararam, em suspenso, à escuta.
Ao mover-se de novo, Malaquias bateu sem querer na mesa-de-cabeceira e fez tombar o candeeiro elétrico, cuja cúpula em vidro se desfez no chão com grande estrondo. Ficaram paralisados de medo. Às tantas, sentiram ruído no quarto ao lado e a luz do corredor acendeu-se.
Ele nem olhou para trás, nem se despediu, em dois passos estava na varanda, apoiou-se no parapeito pois o algeroz estava fora de questão, pôs os pés do lado de fora do varandim e saltou para a rua, rolando depois no chão, como tinha aprendido nos exercícios militares. Só que o fez com tanto azar que embateu nuns caixotes do lixo, tombando o conteúdo com muito ruído e fazendo acordar vários cães, que ladraram durante um bom bocado, obrigando-o a manter-se muito quieto, na escuridão.
Continuou o seu caminho discreto, ainda se assustou com o forte miado de  um gato que se lhe atravessou no caminho, quase o pisando e após um trajeto lento e penoso, chegou à outra rua. Teve de dormir num descampado pois o adiantado da hora já não permitia a entrada no quartel.
No outro dia, lavado e bem penteado, encontrou Adélia no café e ela disse-lhe que se tinha desculpado bem do barulho, dissera ao pai que tinha acordado com um pesadelo e no escuro tinha derrubado o candeeiro. Depois, debruçou-se para Malaquias como se fosse dizer-lhe um segredo e sussurrou:
- Namorar contigo é garantia de ataque cardíaco, querido! – E mordeu-lhe o lóbulo da orelha.
 

IMAGEM: GOOGLE





 
Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 24/05/2015
Reeditado em 24/05/2015
Código do texto: T5253272
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