AMIGO IMAGINÁRIO
 
 
     Interessante como as coisas mudam com o tempo. Há um tempo atrás, se vissem alguém falando sozinho na rua, corria o risco de ser internado. Os tempos mudaram, como se diz por aí. Alguém falando sozinho, muito provavelmente está com o fone no ouvido ligado ao celular, ou ainda, divertindo-se conectado a uma rede social; hoje em dia perfeitamente normal. Foi-se o tempo em que “usar a imaginação” significava ativar e exercitar os miolos. Hoje nos chega tudo mastigado, desenhado e traduzido. Fazer o que? Evolução!
     Antigamente, quando alguém falava sozinho, era logo tachado de “zureta”. O que não significava que realmente a pessoa tinha um parafuso a menos, era só... bem... não tão zureta assim, vai...
     Eu mesmo tinha o hábito de falar com Minzé, um amigo imaginário que me acompanhava desde criança. Mas não era uma amizade passageira, daquelas que passa quando entra na adolescência. No meu caso persistiu por mais algum tempo. Não sei exatamente em que situação cada qual deixa de interagir com seu amigo imaginário, mas no meu caso foi um corte repentino, após uma briga. Desde então não o tenho mais visto, ou falado com ele. Lembro-me como se fosse hoje: Havia acabado de comprar o pequeno sítio, às margens do Rio Grande, mais ao norte, era cercada pela chamada Mata das Pacas, que circundava o sitio indo até às margens do rio. Local muito bem conservado pelo dono anterior, e que prometi conservar assim que comprei o sítio. Já havia passado da adolescência mas tinha recursos suficientes, pois tinha acabado de receber herança de meu pai e precisava empregar logo o dinheiro pra não perder valor.
     Sem mais rodeios, vou direto ao assunto. Cerca de um mês após tomar posse do sítio, estava eu e Minzé conversando sobre as benfeitorias a serem feitas, quando Gervásio, o caseiro, chega correndo, e assustado, diz:
     - Patrão!!!
     - Que é homem!! Parece que viu assombração!
     - Ela ta arrodiano de novo, patrão.
     - Ela quem?
     - A onça.
     - Eita! Existe onça por aqui?
     - Vira e mexe ela aparece, atacando tudo que é vivo. Mata e come.
     Eu fiquei firme e pensativo com a notícia, mas percebi que Minzé estava já se contorcendo de medo. “Ô cabra mole sô!” - Eu disse pro Gervásio:
     - Calma homem! Pra que esse desespero todo. Esse bicho não faz mal a ninguém. Se brincar ela tem mais medo da gente do que a gente dela!
     - Não!? Cada vez que ela aparece é uma “sumição” de animal que só vendo. Dizem que até gente ela pega! Da última vez ela levou a Zefinha filha do Nhô Bento, uma moça nova que era uma boniteza só. Sumiu e nunca mais foi vista. Todo mundo tem certeza que foi comida pela onça.
     Eu vendo que Minzé estava tremendo, pra acalmá-lo, disse:
     - Está bem então... Se tem onça por aqui, vamos dar um jeito de espantar-la pra bem longe. Vamos nós três então, que a gente expulsa a danada.
     - Nós três? Estamos só nós dois aqui – tinha esquecido que Gervásio não sabia da existência de Minzé. Quando me via falando sozinho ele pensava que eu era só mais um excêntrico. Ele continua: - Nós, a Justina, minha mulher, e os meninos? E eu é que não vou “deixar eles sozinho”. Vou ficar por aqui.
     Vi logo que a preocupação dele não era só pela família mas sim do mesmo padecimento de Minzé. Vendo que dos dois não poderia esperar qualquer tipo de ajuda, decidi eu mesmo ir enfrentar a danada. Não me deixei abater pela atitude deles.
     - Pois sim!! Que seja apenas eu a dar conta dessa tal de onça. Vou espantá-la daqui de tal forma que da próxima vez que ela pensar em voltar, só de ouvir meu nome vai “se pirulitar” de medo. Pois sim...!
     Peguei apenas um facão e uma saca de linho pra enrolar no braço, que se fosse necessário ela morderia ali e não me machucaria tanto. Gervásio já tinha ido ficar com os seus e ficamos apenas eu e Minzé. Foi então que determinei:
     - Você, Minzé, fique aqui. Tranque o portão, assim você não corre perigo nenhum. Se acontecer alguma coisa você grita que venho correndo – Minzé tremia mais que vara verde. – E para com esse medo, rapaz, sai do meu pé. Fica grudado na gente. Fique aqui!
     Saí sem olhar pra trás. Entrei por primeiro pelo capinzal de napier. Era capim novo, não estava muito alto, batia pouco acima do ombro. De forma que podia ver qualquer movimento à frente.
     Segui em direção a mata. Antes de chegar à sua margem pude perceber que, um pouco mais acima, o capim balançou, de forma a indicar que alguma coisa estava andando por ali, indo em direção duma tora de jatobá caída, no meio do capinzal. “É ela” – pensei. Me apressei, tentando atalhar-lhe o caminho. Ela foi mais rápida e chegou lá primeiro, onde pode subir e notar a minha presença. Eu parei, por um momento e ficamos nos encarando, olho no olho. Ela mostra os dentes e salta ao chão, tentando fugir, e eu no seu encalço. Vez ou outra a gente parava pra tentar perceber aonde estava o outro. Sempre nessas paradas eu sentia um cheiro forte, olhava pro sapato pra ver se não tinha pisado em alguma coisa, porque era uma fedentina difícil de suportar. E vai daqui, vai dali, até que deu certo da gente se encontrar cara a cara numa pequena clareira. Ela amedrontou-se e ficou, por um breve momento, estática, me encarando. Pouco depois fez uma cara de nojo, soltou um grunhido, deu as costas e fugiu em direção da mata, sumindo pra nunca mais aparecer pr’aquelas bandas. Eu fiquei ali sem entender direito. Nem sequer chegamos a brigar. E aquele maldito cheiro. Olho novamente pra ver se tinha pisado em algo. Me viro pra olhar pra trás e levei um baita susto. Ali, grudadinho em mim, estava Minzé, se tremendo todo, todo borrado, tamanho era seu medo, me sujando também, com aquela catinga insuportável.
     - Mas o que é isso Minzé? Não falei pra você ficar esperando por lá? – ele continua me olhando sem dizer nada, tamanho era seu medo – E agora? Como vou dizer que a onça sequer quis brigar comigo. Que nojo! Você ta me sujando todo. Vamos tomar banho antes que alguém nos veja envolto com essa porcaria toda.
     Assim que a gente sai do capinzal, damos de cara com um irmão meu. Havia esquecido que ele viria me visitar naquele dia.
     E pra explicar aquela fedentina toda! Que eu não era o responsável por toda aquela merda. Virei “A” piada; fofoqueiro que ele só, todos da cidade ficaram sabendo. Até hoje ele não acredita que aquela merda toda era de Minzé. Eternizei-me como o vilão na estória!
     Quanto a Minzé, brigamos feio naquele dia e nunca mais nos vimos.
     Mas posso jurar de pé junto, que aquela sujeira toda era dele e não minha. Hunf! Não gosto nem de lembrar...
 
 
 

            




Mai/2015.


 
Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 08/07/2015
Reeditado em 08/07/2015
Código do texto: T5303925
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