O LIXO QUE NÃO ERA DO VERÍSSIMO

Eles viviam a mais de três anos vasculhando os lixos das ruas daquela cidade, mas nunca haviam se falado, até aquele dia, numa caçamba de lixo da rua 15, cada um com seu saco de lixo.

- Bom dia...

- Bom dia.

- A senhora é da calçada da rua Outono!

- E o senhor da rua das Esperanças.

- É!

- Eu ainda não o conhecia pessoalmente...

- É que eu perambulo mais pela praça central.

- Ah. Desculpe o meu olho grande, mas estou vendo o seu lixo...

- Perdão, eu tenho um pouco de problema com a audição. O meu o quê?

- O seu lixo!

- Ah...

- E percebi que não é muito. Os catadores lá da praça devem ser muitos.

- Na verdade sou só eu. É que você sabe, né? Nessa crise o povo tem radicalizado muito o consumo e o lixo tem diminuído.

- É mesmo... Notei também que o senhor conseguiu muitas latas.

- É que o consumo de refrigerante tem aumentado bastante. Não sei por que as pessoas gostam de tanta coisa que faz mal. Só os malucos...

- Entendem.

- E a senhora também.

- O que disse?

- Digo, você também!

- Melhor assim.

- Perdoe também o meu olho gordo, mas estou vendo alguns restos de comida em seu lixo. É pro seu cachorro?

- Não, eu cozinho e eu mesma como. O cachorro come as sobras.

- As sobras das sobras...

- E do seu lixo, o que é sobra?

- A senhora.

- Como é?

- A senhora... Não tem marido?

- Tenho, mas ele não é daqui.

- O Espedito Santos, não é?

- Como você sabe?

- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espedito Santos.

- É. E ele escreve de um jeito lindo! Dá aulas todos os dias.

- Ele é professor?

- Não é incrível? Mas, por que você estranhou?

- Pela letra no envelope. Achei que era letrinha de professora (riso).

- Ha, ha, ha... E o senhor não tem nenhuma carta, nem das que jogam no lixo.

- Pois é...

- Voltando ao assunto... N'outro dia, Espedito e eu demos uns amassos.

- E daí?

- Depois disso, nunca mais tive notícias.

- Meu Pai! Morreu!?

- Sinto muita falta dele...

- Ele já estava bem velhinho? Será que foi morar no Sul? Vai ver se entregou aos vícios.

- Também, todo mundo começou a fumar!

- Como é que você sabe?

- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no lixo. Carteira com dinheiro nunca aparece.

- É verdade. Mas, já catou uma carteira alguma vez?

- Sim.

- De cigarro?

- Não, de dinheiro! Graças a Deus! Eu nunca fumei!

- Sei... (riso) mas estou vendo uns vidrinhos compridos aí no seu lixo... Você bebe?

- Refrigerante. É uma nova fase. O tempo da tubaína já passou. Lembro de um namorado que eu tive, parecia o cara certo! Mas só vivia bebendo... Aí a gente brigou.

- Brigou? Ainda bem que eu achei a namorada certa!

- Essa você também descobriu no lixo?

- Sim. Cheguei com um ramo de flores que catei na praça, um cartãozinho do dia dos namorados que encontrei no lixo e vi ela lá na calçada, jogada fora, coitada... Tinha muito frio, então a cobri com lenço de papel. Mas ela se irritou e me deu uma bofetada!

- Deve ter inchado bastante! A dor já passou?

- Já, mas ainda tenho a marca dos dedos...

- É bom para disfarçar a cara lisa.

- ...

- Tô vendo algumas revistas de palavras cruzadas no seu lixo.

- É só pra eu me distrair um pouco na calçada. Mas eu nem sei ler, é só pro pessoal pensar que eu tenho estudo. E quem sabe assim eu arranjo mais...

- Namoradas!?

- Não... Chega de mulheres na minha vida.

- E essa fotografia aí de mulher no seu lixo? É até bonitinha!

- Credo! Eu nem tinha visto isso... Essa aqui já deve tá na gaveta, do jeito que a foto é antiga... Vou jogar isso...

- Você nem rasgou a fotografia. Isso significa que, lá do fundo você acredita que ela possa voltar.

- Só se for pra assombrar o meu lixo!

- Não pode negar que a mulher lhe interessou...

- Engraçadinha... Além de ficar bisbilhotando o meu lixo gosta de fazer graça. Por que não vai ler pra lá suas poesias?

- Oh não! Você viu meus poemas?

- Vi, e não gostei muito.

- Não são tão ruins assim!

- É sério, são ruins mesmo! Se tivesse escrito pra mim, eu teria rasgado. Nem teria dobrado.

- Se você ao menos soubesse ler... (riso).

- É melhor ser analfabeto e vasculhar o lixo do que estar por aí roubando! Se bem que, não é uma má ideia... Tem como roubar lixo?

- Acho que não. Porém, lixo é domínio público.

- Você tem razão! Vou me jogar no lixo, o lixo é público! Vou vasculhar as sobras das privadas dos outros, digo, da vida privada dos outros. O lixo é comunitário! Vou mergulhar no lixão e invadir o mundo das pessoas... Sempre achei que deveria fazer algo mais atrevido para conseguir sobreviver. Será isso?

- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo! Acho que não é algo honesto. Quando e onde já se viu tanta safadeza?

- No seu lixo.

- O quê?

- Ops! Me enganei, é só cascas de camarão.

- Ah, eu gosto. E você?

- Eu adoro camarão!

- Já descasquei na feira, mas nunca comi. Quem sabe a gente pode...

- Descascar camarão na feira, juntos!?

- Eu ia dizer: comer as cascas.

- Não quero dar trabalho.

- Você não tem mesmo trabalho nenhum pra me dar! (rso).

- Vai sujar a sua calçada!?

- Nada. Num instante vem o gari e limpa e põe todos os restos fora, no meu lixo.

- No seu lixo? No meu lixo!

Lyta Santos
Enviado por Lyta Santos em 19/06/2016
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