MORREU? NÃO TRIPUDIE!

MORREU? NÃO TRIPUDIE!

Ela ligou-me às duas horas da madrugada.

“Pedro. Meu marido morreu. Não sei o que fazer”.

“É preciso enterrá-lo”, disse-lhe. “Onde está?”

“No mesmo hospital”.

“Encontro-a lá, em meia hora”.

As providências foram as de praxe. O velório solitário com pouquíssimas pessoas. Com dificuldade conseguimos encontrar seis homens para carregar o caixão.

“Sinto-me cansada, mas com fome” disse-me. “Gostaria de comer alguma coisa. Você poderia levar-me para jantar?”

“Sim”

Percebi que perdera apenas o marido, mas não o apetite, pois enfrentou com galhardia uma deslumbrante costeleta de carneiro grelhada e uma boa garrafa de vinho. Depois fez outro pedido:

“Por favor. Não me deixe sozinha hoje. Preciso de companhia”.

Concordei.

E completou. “Vamos ao meu apartamento. Não há ninguém lá”.

“Está bem”.

Entramos.

“O quarto é no fim do corredor” disse-me. “Venha. Nesse armário há pijamas de homem. Devem servir, pois ele era do seu tamanho, apenas um pouco mais gordo”.

Não muito à vontade escolhi um amarelo com listas azuis. E fui tomar um banho que estava precisado.

A cama era a própria, do casal. Enorme. A contragosto deitei. No lugar do morto, que não havia outro.

Ela também tomou um banho. E deitou ao meu lado.

Ambos quietos. Ela abraçou-me. Não havia clima para sexo. Nem para qualquer outra coisa. Da minha parte sequer para dormir.

“Posso deixar a luz da cabeceira acesa?” perguntei.

“Tudo bem. Você não está com medo, está?”

“Não exatamente” respondi-lhe.

Em poucos minutos ela dormiu. E eu passei a vivenciar uma situação decididamente desconfortável. A ouvir, inclusive, todos os pequenos barulhos daquele enorme apartamento.

Intrigavam-me especialmente aqueles oriundos da sala de jantar contígua. Pois todos os móveis resolveram estalar ao mesmo tempo.

Aquele corredor escuro começou a me incomodar. Resolvi fechar a porta do quarto com chave. E conformei-me em passar essa segunda noite sem dormir.

Continuava desperto quando, novamente, as duas da madrugada ela acordou, sentando-se na cama. Olhou-me com os olhos arregalados.

“Sinto que meu marido está aqui. Na sala. E quer falar comigo”. Levantou-se. Vestiu um roupão. Abriu a porta e desapareceu.

Nesse instante eu também já estava de pé.

Não tentei segui-la. Mesmo porque, sempre me ensinaram, que não se deve interferir em conversa de marido e mulher.

Mas procurei acender a luz daquele malsinado corredor. Não achei nenhum interruptor. Deveria estar no outro lado. E lá, confesso, não iria nem com reza brava.

Procurei chamá-la da porta do quarto onde me encontrava: “Maria. Maria. Mariaaa”!

Silêncio sepulcral. E, sepulcral aqui, não é força de expressão.

Resolvi despir aquele pijama emprestado. Mesmo porque nunca gostei de amarelo. E, como não me agradava a idéia de permanecer pelado naquelas circunstâncias vesti, rapidamente, minhas próprias roupas. Não dispensei nem paletó e gravata.

E dirigi-me à sacada. Do próprio quarto, claro, que não iria aventurar-me em parte nenhuma do apartamento naquela escuridão.

Queria ver gente. Viva, de preferência, que de morto já estava farto. E, dali podia ver automóveis, motocicletas inclusive ônibus a transitar pela avenida lá em baixo.

Permaneci cinco horas nesse terraço. Cheguei até a memorizar os números e destinos dos coletivos da madrugada. Finalmente o dia clareou.

Voltei ao malsinado corredor. Continuava escuro. Mas, lá no fundo pude ver a sala tenuamente iluminada pela luz que permeava as cortinas das janelas.

Não havia como fugir. Precisaria percorrê-lo. Só e com minhas próprias forças. Não foi fácil. Mas devagar cheguei à sala.

Encontrei-a dormindo deitada de bruços sobre o carpete. Percebi, de longe, que respirava. Deduzi que continuava viva.

Jamais ousaria incomoda-la. O descanso que desfrutava era merecido.

Bem por isso, silenciosamente, abri a porta principal. Fechei-a por fora e passei a chave por baixo.

Para nunca mais retornar.

Morto que é morto, exige respeito!