A travessura do vovô

Vovô Cláudio saiu do elevador assobiando. Parecia contente; não que não fosse habitualmente um velhinho bastante saliente, simpático e falador. Mas naquele manhã parecia especialmente alegre, com um ar sapeca, de menino levado, como observou Antônio, o porteiro do edifício, quando viu vovô Cláudio indo em direção à porta do prédio, com certa pressa, a despeito dos seus passinhos curtos, com os movimentos ligeiramente trêmulos, como se fosse um desses bonecos made in China, movidos a pilha.

- O senhor vai sair sozinho, seu Cláudio? – Antônio parou de varrer e perguntou, preocupado.

- Você está vendo alguém do meu lado? – vovô Cláudio respondeu com outra pergunta, sem se deter nem por um instante.

Antônio, um nordestino atarracado, quase sem pescoço, com um bigodinho fino sobre o lábio, ficou olhando desconfiado. No bolso de trás da calça de vovô Cláudio, ele notou um considerável volume, como se o velho estivesse carregando muito dinheiro na carteira.

- Dona Leilinha sabe que o senhor vai sair?

- Ah!... Dona Leilinha, dona Leilinha...

- Onde o senhor vai... com esse dinheiro todo na carteira?

- Antônio, toma conta da tua vida. Faz o teu serviço e me deixa em paz, tá bom?

- Seu Cláudio... Cuidado... Isso aí fora tá muito perigoso, cheio de pivetes... Metem a mão no seu bolso, levam esse dinheiro todo e inda jogam o senhor no chão.

Vovô Cláudio apressou os passinhos curtos quando pisou na calçada, um sorriso estranho nos lábios, um brilho diferente nos olhos.

Melhor avisar dona Leilinha, pensou Antônio.

Ele largou a vassoura encostada na parede e tocou o interfone do apartamento 404. Tocou, tocou e nada. Antônio coçou a carapinha, pensativo, enquanto esperava. Aquela demora para atender sugeria que ou dona Leilinha ainda estava dormindo, o que era difícil, porque ele sabia que ela levantava cedo, ou vai ver estava então no banheiro, talvez tomando banho... mas queria dizer, isso sim, é que na verdade seu Cláudio tinha mesmo se aproveitado de um momento de distração da filha para sair de casa sozinho - e com a carteira recheada de dinheiro. Mas pra onde?

Antônio desistiu do interfone e hesitou entre ir direto tocar a campainha do apartamento de dona Leilinha ou correr atrás de seu Cláudio na rua.

Foi até a porta do prédio, olhou para os lados e avistou vovô Cláudio, lá longe, já se preparando para atravessar uma rua, junto a várias outras pessoas. Pensou no escândalo que o velho não faria se ele ousasse tentar impedi-lo.

Melhor chamar dona Leilinha, Antônio decidiu.

Os carros começaram a buzinar. Vovô Cláudio não ligou, seguiu em frente, os passinhos curtos, a carteira fazendo volume no bolso de trás da calça, e chegou finalmente ao outro lado da calçada. Alcançou a praça, indiferente ao intenso movimento a sua volta.

Antônio ouviu dona Leilinha dizer do lado de dentro do apartamento, antes de vir abrir a porta.

- Poxa, papai! Não está ouvindo a campainha? Estão tocando há meia hora!

Antônio mal teve tempo de gozar o êxito de ver suas suspeitas se confirmarem. Dona Leilinha abriu a porta bruscamente, a roupa torcida, vestida às pressas, descalça, uma toalha enrolada no cabelo, um cheirinho bom de sabonete vindo do corpo esbelto e ainda rígido, a pele branca, bonitona que só vendo, apesar de já entrada nos quarenta, não sabia como que uma moça assim tão bem apanhada, educada, com um bom emprego, não tinha casado ainda.

- Ah. Oi, seu Antônio. É o senhor? Papai deve ter adormecido e não escutou a campainha.

Seu Antônio. Ninguém mais o chamava assim, com essa importância, com esse respeito todo. Só dona Leilinha. Os outros o chamavam de Antônio mesmo, de Tonho, quando não de Paraíba. Seu Antônio. Seu Antônio. Ah, dona Leilinha...

- Que foi que houve, seu Antônio?

O porteiro precisou de mais dois segundos para então voltar novamente à realidade.

- Dona Leilinha, é o seu Cláudio – ele disse.

Ela não entendeu. Olhou para trás, para dentro da casa, como se procurasse pelo pai ou por alguma coisa, algum som, o barulho de um ronco ou de batidas de martelo, algo que indicasse a presença do pai dentro do apartamento.

- O seu Cláudio saiu pra rua agorinha mesmo.

- Saiu? Mas saiu para onde?

Antônio coçou a cabeça.

- Isso eu não sei, não, senhora. Mas saiu. E com o bolso cheio de dinheiro.

- O quê?

- É, com a carteira gorda. Eu inda perguntei onde ele ia, disse que era perigoso levar tanto dinheiro, mas a senhora sabe como é seu pai... Me mandou deixar ele em paz.

- Dinheiro? Meu pai não anda com dinheiro. O senhor tem certeza, seu Antônio?

O senhor... Seu Antônio... Ah... Só mesmo dona Leilinha... Senhor...

- Tenho, sim, senhora. Tava com o bolso cheio assim, ó! E tava com uma cara muito da safada, viu? A senhora me desculpe eu falar desse jeito do seu pai. Mas ele tava parecendo criança quando apronta alguma travessura. Sabe como?

- Ai, meu Deus!...

Leilinha deixou a porta aberta e entrou. O porteiro ficou do lado de fora, esperando ela voltar e dar alguma ordem.

A praça estava cheia. Pessoas apressadas passavam de um lado para o outro; no parquinho, cercado por grades, crianças, com suas respectivas mães ou babás, brincavam nas gangorras e nos balanços; do lado de fora, sob uma árvore, um grupo de mendigos dormia esquecidamente, entre tralhas imundas e uma garrafa de cachaça já quase vazia; noutro ponto, pivetes de diversos tamanhos cheiravam cola de sapateiro e espreitavam, com o olhar entorpecido, o movimento em volta.

Vovô Cláudio aproximou-se das mesas onde outros velhos, aposentados e desocupados jogavam cartas e dominó. Conhecia um ou outro, de outros tempos, nenhum que merecesse muita atenção.

- Ih! Olha só quem está aí! – exclamou um dos velhos que jogavam sueca.

Vovô Cláudio acenou com a mão de longe e seguiu em frente, demonstrando não ter nenhuma intenção de parar para conversar, embora aparentemente quisesse que o vissem.

- Tua filha te deixou sair sozinho hoje, velho? – provocou um outro, soltando uma risada debochada.

- Cuidado para não se perder, hein!

Vovô Cláudio fez um gesto malcriado e continuou andando, com seus passinhos curtos, a carteira no bolso chamando a atenção.

Uma jovem elegante, de cabelos louros, lisos e compridos, vinha subindo as escadas, saindo da estação do metrô. Vovô Cláudio olhou para ela demoradamente, com os olhos brilhando.

Leilinha veio de volta. Estava arrumada para sair. Fechou a porta, pegaram o elevador.

- Era só o que me faltava agora. Para onde será que o papai foi, seu Antônio?

O porteiro franziu a testa, pensando numa outra coisa. Seu Cláudio sair sem avisar não era só o que faltava para dona Leilinha, ele pensou. Faltava ainda uma outra coisa para ela também, isso ele sabia muito bem que faltava, mulher nenhuma podia viver assim daquele modo, só trabalhando e cuidando do pai, os irmão casados e sem nem um namorado pra levar ela pro cinema ou pra passear no domingo de tarde, só que ele não tinha coragem de se oferecer.

Os dois saltaram do elevador e ficaram parados na portaria, sem saber qual atitude tomar.

- Andar na rua está tão perigoso hoje em dia, ainda mais para uma pessoa de idade. Ninguém respeita. Onde já se viu sair cheio de dinheiro no bolso? Não sei se eu chamo o Helinho, a Elza... Papai deve ter ficado maluco. O senhor não sabe para onde ele pode ter ido?

Antônio inclinou a cabeça e passou o dedo pelo bigodinho.

- Saber com certeza eu não sei, não, senhora. Mas...

- Mas o que, seu Antônio?

- É que seu Cláudio tava muito alegriiiinho, saiu do elevador assobiaaaando... A senhora tá entendendo o que eu quero dizer? Tava parecendo que ali tinha coisa, viu? Pra mim tinha.

- Tinha coisa o que, seu Antônio? Como assim?

O porteiro coçou a cabeça e olhou para o chão, embaraçado. Como é que ele ia falar um assunto desses logo com dona Leilinha?

- Coisa, ora.

- Que coisa, pelo amor de Deus?

Antônio começou a esfregar o bico do sapato no tapete, sem levantar a cabeça.

- A senhora, dona Leilinha, me desculpe... falar um negócio desses assim com a senhora, mas...

- Fala de uma vez, seu Antônio! Que horror!

- É... A senhora sabe o jeito como menino novo antes de ficar rapaz fica no dia de ir na zona? Era assim mesmo que seu Cláudio tava. Com aquele brilho nos óio. Sabe como?

Leilinha piscou os olhos, confusa.

- Seu Antônio, meu pai tem 81 anos. O senhor não acha que ele...

O porteiro recuou, sem graça.

- Não... É... Não... Achar eu não acho, dona Leilinha. Achar eu não acho, não, senhora. Eu só disse que ele tava com aquela carinha de menino que vai tirar o atraso, a senhora sabe como é?... Eu sei que 81 anos não é idade pra se fazer dessas coisas mais... se bem que hoje em dia tem desses remédios aí que fazem a... o... é... quer dizer...

Leilinha colocou as mãos na cintura.

- Francamente, seu Antônio. Francamente.

Quando a jovem passou por ele, Vovô Cláudio aspirou o perfume que vinha dos cabelos dela e depois pôs se a segui-la pela calçada, com seus passinhos curtos, esforçando-se para acompanhá-la, a carteira gorda fazendo balançar os fundos da calça.

Ao ver a linda garota, um dos pivetes mais graúdos do grupo que cheirava cola de sapateiro, aproximou-se dela e fez uma mesura exagerada, dizendo um gracejo qualquer.

Intimidada, a jovem tentou desvencilhar-se do menino.

Vovô Cláudio apressou o passo, indignado.

- Ei! Deixa a moça em paz, seu moleque!

O pivete virou o rosto, espantado, e olhou para vovô Cláudio. Aproveitando-se desse instante de distração, a garota conseguiu passar e seguiu em frente. Com raiva, o pivete avançou na direção de vovô Cláudio, gingando, sem camisa, descalço, os pés sujos, a bermuda larga e comprida.

- Ih! Qual é, vovô! Tá nervoso? Tá dando alteração por quê? Olha o coração, hein!...

Vovô Cláudio abanou a mão.

- Sai pra lá, vagabundo! Vai trabalhar!

O grito chamou a atenção de outras pessoas que estavam passando. O pivete saiu de lado e voltou para junto dos outros.

Vovô Cláudio procurou avistar novamente a garota, mas não a viu mais. Seguiu então em frente, com seus passinhos curtos e um curioso brilho de satisfação a reluzir nos olhos.

A calçada em frente estava apinhada de gente. Um ponto de ônibus e várias barracas de camelô formavam uma espécie de corredor, por onde as pessoas eram obrigadas a passar.

Vovô Cláudio seguiu nessa direção, a aparência frágil de octogenário, a carteira pesada chamando a atenção.

De repente ele sentiu um tranco, alguém esbarrou nele por trás. Virou, levou a mão ao bolso. Tarde demais. Tinham lhe levado a carteira.

Vovô Cláudio olhou em volta. O fluxo intenso das pessoas no corredor estreito, entre as barracas de camelô, não permitiu que ele visse o ladrão.

Antônio e dona Leilinha estavam na calçada, em frente à portaria do prédio, quando avistaram vovô Cláudio chegar.

Leilinha correu na direção do pai.

- Papai! Onde o senhor foi? Quer me deixar maluca, é?

Vovô Cláudio olhou com desprezo para o porteiro.

- Foste correndo contar para ela, não é?

- Cadê o dinheiro, seu Cláudio? Cadê a carteira que tava no seu bolso? – perguntou o porteiro, andando em volta do velho, curioso. – Aposto que levaram.

- És um língua de trapo mesmo.

- Que foi, pai? Para que o senhor foi levar tanto dinheiro para a rua? Assaltaram o senhor?

Vovô Cláudio olhou com ternura para a filha.

- Você acha que teu pai é bobo? Assaltaram nada. Dei foi uma lição numa turma de vagabundos.

Leilinha suspirou, apreensiva.

- Pai.

Numa rua transversal à praça, a dupla de punguistas foi conferir o produto do roubo. Um dos rapazes levantou a camisa, os olhos brilhando de excitação.

Tirou de dentro da calça a carteira que tinha acabado de roubar. Pelo volume devia ter uma boa grana, ele pensou. Além de cheques, cartões de crédito...

Ele abriu a carteira, ansioso. O outro espichou o pescoço para olhar.

- Filho da puta! – os dois disseram com raiva.

Dentro da carteira não tinha dinheiro, nem um mísero centavo sequer. Havia apenas uns bons metros de papel higiênico, enrolados de modo a parecer um bolo de dinheiro. E um bilhete, onde estava escrito: “Isso é para limpar a bunda da vaca da tua mãe”.