UMA FÁBULA FESTIVALEIRA: O CANÁRIO BELGA E O ANU

Segundo contam na minha terra, alguns anos após Noé atracar com sua jangada nas margens do Rio Mississipi, a bicharada que desembarcou por aquelas bandas resolveu fazer um festival de canções selvagens, como forma de enaltecer os valores que nutriam por encontrar aquela terra abençoada após o dilúvio.

Com o tempo foram surgindo outros festivais de canções selvagens em outras regiões, cada um incorporando as características locais na sua forma de conceber e fazer a canção selvagem.

Com o tempo, alguns animais começaram a dizer que a sua canção selvagem era a canção selvagem autêntica, taxando de canções domesticadas todo o canto que se furta do brado selvagem.

Pois foi depois do tradicional Arizona da Canção Selvagem que um canário belga teceu críticas ao conjunto da obra apresentado, do alto do seu galho falou que quase tudo que havia escutado era a mesmice que ele já escutava desde o tempo do dilúvio.

Pois não é que um anu, com tempo de sobra, achou que o canário estava falando da obra dele e respondeu cheio de dedos, ou melhor cheio de bicos, levando a crítica para o lado pessoal.

O canário belga respondeu que crítica não era dirigida a obra do anu, mas sim ao cenário da canção selvagem que canta o romantismo de uma selva que é amada nas canções, porém carbonizada no mundo real.

O anu ficou furioso com a resposta e se pôs a esbravejar contra o canário belga, disse que música não é ciência, que mesmo ele que nunca estudou arquitetura tinha um ninho de barro, que o canário belga nada entendia de sentimentos e o lugar dele era fora dos palcos, da antes frondosa árvore das canções selvagens.

E se foi o anu, batendo asas e assoviando “meu biquíni de bolinhas” pelo caminho...

Atônito com a cena, o canário belga comentou com um joão de barro que trabalhava alguns galhos abaixo:

-Tempos insólitos estes em que um anu, que não toca nem berimbau, acha que pode definir se o lugar de alguém é ou não no palco. Quando se compõe uma obra, sem se tocar nada, não perde horas estudando escalas, harmonia, praticando, instrumento, assim sobra tempo pra tomar as dores por qualquer crítica. Nem mesmo as críticas que faço são novas, desde a Carta à Mississipi em 81 se fala disso. Lamentável que existam mentalidades que acreditam que podem definir a quem o palco irá servir, que não enxergam o palco como um espaço de todos. Porém, quando se faz mais do mesmo, fica fácil até pra quem não toca nada se destacar.

Nisso o João de Barro interrompe:

-Do que tu tá falando, canário? Desculpa, não escutei por causa do barulho das ferramentas, tô terminando uma obra nova pro anu...

@oantonioguadalupe