A caverna e a luz
 
Nunca corri tanto como naquele dia. O fogo parecia não ter fim e se alastrava tão depressa que, mesmo quando eu achava que o tinha deixado pra atrás, ele ressurgia na minha frente, me cercando. Até hoje ninguém sabe o que provocou o fogo, se foi homem, raio ou sei lá o quê. Agora, não é quem causou o incêndio que interessa, mas sim o que o fogo fez ferver dentro de mim; e o pior é que a tensão que começou naquele dia demorou a cessar.

Os homens chamam-me Bicho Preguiça; no entanto, na floresta, onde nos conhecem de verdade, chamam-nos Bicho Tranquilidade - nome muito honrado e verdadeiro -, porque não somos nada preguiçosos, temos apenas um tempo diferente de fazer as coisas. E há de fato um abismo entre os significados de preguiça e tranquilidade, principalmente para os homens que vivem nas grandes cidades, em constante correria: para eles, a tranquilidade é aceitável (desde que não atrapalhe a produção) e a preguiça, um crime, justamente porque interfere no que mais lhes interessa: a produtividade. Não me entendam mal: não sou a favor do ócio total, mas confesso que a pressa humana não me agrada nem um pouco: ela extrapola demais as necessidades. Eles, os homens, é que deveriam ser conhecidos como Bichos Ansiedade.

Apresento um exemplo para esclarecer o que digo: adiantar, para os Bichos Apressados, significa avançar, melhorar, ir muito depressa, antecipar, como li num dicionário deles. Ora, este termo que expressa ao mesmo tempo rapidez e progressão é agradável aos homens; é comum um pai dizer com orgulho que o filho está adiantado, como se isso fosse a melhor coisa do mundo. Vejam que absurdo! Essa necessidade de se sentir à frente, adiantado é, na verdade, um descompasso com o tempo tão ruim quanto o atraso. Eles se importam muito em avançar rapidamente, mas parecem não saber muito bem aonde vão. Às vezes é melhor parar, pensar e até retroceder em vez de prosseguir. Correndo, o macaco caiu na boca da onça, diz um provérbio nosso.

A verdade é que a maioria dos homens - não é bom generalizar - tem uma maneira bem estranha de ver o mundo, pois costuma definir todas as coisas comparando-as consigo. Erram muito por isso. Para se ter uma vaga idéia dos absurdos de que são capazes, conto-lhes uma das maiores confusões criadas pelos humanos: muitos deles acreditam piamente que são parecidos com deus, ignorando totalmente que deus se parece mesmo é com um Bicho Tranquilidade. Mas esse é um erro comum. Já ouvi capivaras afirmarem que deus é como elas, bem como onças que tem certeza que deus é um felino. Bom, vai ver deus não tem forma definida e cada bicho o enxerga de acordo com seus olhos. É muito difícil mesmo não julgarmos as coisas todas tomando-nos como medida; mas, quando somos nós os réus - não os juízes - percebemos como é sagrada a imparcialidade. Acelerados ou preguiçosos, quem poderá dizer qual é o tempo certo de fazer as coisas? Acho mesmo que não existe tempo certo, cada um age como lhe parece melhor.

Vamos à história. A minha vida antes do incêndio era calma: pegar frutos, comê-los, cuidar do meu filhote com calma e muita brincadeira, e nadar de vez em quando, que é uma das minhas atividades preferidas. Ficava no alto das árvores, principalmente da grande embaúba onde eu morava, com meu filhote, comendo e brincando, quase sempre em paz. Havia horas de medo, quando chegava perto uma onça ou uma cobra, bichos perigosos para mim e meu filhote, mas na maior parte do tempo, minha vida era conversar com os pássaros, macacos e outras Tranquilidades que viviam também por ali.

E assim vivi até o dia da queimada que consumiu boa parte da floresta e derrubou, num soco de fogo a minha casa. Só me salvei, porque o bem-te-vi me avisou com antecedência que vinha o fogo correndo pela floresta e, como minha árvore ficava perto do rio, corri - apesar das labaredas que me cercavam - até a margem saltei n´água e nadei, com meu filhote preso às costas. Mas, quando, depois de uma noite toda nadando, cheguei a uma margem sem perigo, percebi que ainda teria muito trabalho porque só havia cinzas: as árvores - meu lar e fonte de alimento - eram agora carvão.

Com meu filhote no colo e sem amigos por perto chorei durante toda a manhã. O fogo, com suas labaredas amarelas e vermelhas, havia levado tudo, até o colorido da floresta: agora, tudo era cinza. Não se sentia mais o perfume das flores e dos frutos, apenas o cheiro da fumaça que nos envolvia. Olhando o horizonte, nublado pela fuligem, não se via uma árvore em pé, sequer. Não sabia aonde ir e tínhamos fome, eu e meu filhote. Andei vagarosamente à margem do rio, sem muitas esperanças. Dormimos a primeira noite no descampado, quase sem forças de tanta fome. Foi o dia mais triste de toda minha vida.

No dia seguinte, dei-me conta que estávamos bem perto de uma árvore tombada no rio, a qual não tínhamos visto, pois já era noite quando ali chegamos. Para nossa sorte, a árvore havia caído na água antes do incêndio e era uma ingazeira pejada de frutos. Não acreditei quando vi que havíamos encontrado uma casa, ainda que derrubada, e comida.

Nadei até a copa da árvore com meu filhote agarrado a mim. Lá nos sentamos e começamos a comer. Mas, para nossa surpresa e desgosto, sofremos um ataque de um gavião que estava por ali; tive que mergulhar rapidamente para nos salvar e nadar até ficar distante do perigo. Pelo menos conseguimos comer alguma coisa.

À noite, deixei meu filhote escondido numa caverna, que encontrei perto do rio, e voltei sozinha para catar uns ingás para nós. Eu tremia de medo e frio, mas consegui catar algumas frutas, as quais levei dentro da boca até meu esconderijo.

Estávamos fracos demais e ficamos não sei quanto tempo vivendo assim: durante o dia, escondidos na caverna, só bebendo água e comendo os frutos que eu havia trazido na noite anterior, e à noite, minhas furtivas saídas para pegar o que comer. Meu filhotinho tremia só de ouvir o som agudo do carcará, que parece um grito humano, o qual se escuta de longe e dá mesmo muito medo.

Assim vivemos até um dia de chuva forte que não parava por nada. Quando percebi a água já entrava pelo buraco da nossa caverna e não tive tempo de fugir: a correnteza nos levou rio abaixo. Botei meu filhote sentado na minha barriga e desci como um tronco pelas águas; assim viajamos pela torrente por um dia e uma noite.

Na manhã seguinte, acordei numa praia. O corpo doía tanto que mal consegui virar a cabeça. Procurei só com os olhos - sem conseguir me movimentar - o meu filhote, mas não o achei e desmaiei, de tristeza e cansaço. Não sei quanto tempo fiquei assim.

Acordei com alguém levantando minha cabeça e tentando me dar uma frutinha na boca: era meu filhote que cuidava de mim! Que alegria quando vi os olhinhos dele! Comi o que me deu e descansei mais. Só mais tarde consegui me erguer e aí que percebi que estávamos numa parte da floresta que havia sido poupada pelo fogo. Que alívio!

No entanto, meu medo não foi embora logo: continuei com o hábito de esconder meu filhote e pegar a comida de noite. Passávamos os dias dormindo enfurnados para não gastar a energia, exatamente como fazíamos logo após o incêndio - apesar de não haver mais necessidade disso. Estávamos num lugar seguro, com bastante alimento e proteção das árvores, mas eu não conseguia mais viver da maneira livre e feliz de antes.

Meu filhote, às vezes, tentava me mostrar que podíamos voltar às árvores e brincar, mas eu não o ouvia, apenas me preocupava em trabalhar para sobreviver, esquecendo de viver. Era uma obrigação criada por mim, mas não conseguia agir de outra maneira: só me sentia protegido assim, havia me acostumado àquela vida. Acho que todos os bichos entendem do que falo: momentos há em que a sensação de segurança se sobrepõe a tudo: é como se não importasse muito como se vive o dia-a-dia, desde que haja uma rotina, uma impressão - ainda que falha – de continuidade, de certeza. É, na verdade, trocar a espontaneidade e a liberdade, que lhe é inerente, pela sensação de controle - apenas sensação, pois controle não há como se ter; é tornar-se conservador, para conservar a si mesmo numa ilusão, que não passa de sombras, simples imagens projetadas, tão distantes da realidade.

Dormíamos muito, pois nos faltava energia. Não sei definir quanto tempo ficamos ali; mas um dia, pro meu espanto, percebi que o meu filhote havia crescido, que estava maior que eu, e isso me fez chorar. Afinal, ontem ele era pequeno, uma criança, com quem eu passava o dia brincando. Ter deixado a infância dele se esvair dentro da escuridão e do isolamento, sem forças para diversão, me fez sofrer demais. Amadurecer não é ruim, pelo contrário: crescer é bom, é o curso da vida - o meu sofrimento não era por ele ter se tornado adulto -, o que me incomodava mesmo era não ter vivido uma fase importante, que não voltaria mais. Chorei no escuro da caverna por horas, por ele e por mim.

Acordei-o, em seguida, sem vê-lo, e o chamei para sair à luz do dia. Ao sairmos do nosso frio e escuro esconderijo, vi que ele ainda era um filhote; ele não estava crescido, eu tive apenas um horrível pesadelo. Abracei-o forte e ele, sem entender o que acontecia, ainda me perguntou se eu não estava com medo de sair à luz do dia. Respondi-lhe que não e o carreguei até o alto de uma bela ingazeira; de lá contemplamos a luz do sol e as cores que só a claridade liberta.