*Agulhas num Palheiro

Sem querer, eu e o Pedro, numa troca de emails, acabamos descobrindo o tema das agulhas e ele sugeriu que desenvolvêssemos um texto. Foi muito bom trabalhar com ele; Pedro é um cara inteligentíssimo e muito divertido, cheio de idéias...

Sem querer também, o texto tem a ver com o conto de Machado de Assis, A Agulha e a Linha, daí a referência a "brigas machadianas".

Como as idéias pareciam não ter fim, o texto ficou grande... mas creio que conseguimos costurá-lo!

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Dentro da caixa de costura, o alfinete e agulha estão discutindo. Ali também estão a tesoura, carretéis de linha, botões, um dedal, um pedaço de pano e um zíper.

(Alfinete): Faça como eu, dona Agulha... Onde me espetam, fico!

(Agulha): Quem fica parado não progride, seu Alfinete!

(Alfinete): E não tenho buraco algum para camelo passar, sua descabeçada...

(Agulha): Invejoso!

(Zíper): Calma, aí, pessoal! Sem fechar o tempo... Nada de brigas machadianas ou religiosas... É tempo de abrir os corações...

(Carretel): Concordo. Em nossa função temos que ficar alinhados.

(Tesoura): Seu Alfinete, sem querer cortar o papo... Não queria me meter nessa briga para não entrar numa furada, mas tenho que defender a dona Agulha.

(Carretel) - Quem já teve bolha no calcanhar sabe da importância da agulha. Uma espetadinha só, me passar na bolha e pronto... É calçar o sapato ou o tênis e voltar para o baile ou para o futebol. Pode ser que seja necessário um “band-aidzinho” torturante, mas se não fôssemos a agulha e eu...

(Alfinete): Podia usar um de nós também, né?

(Zíper): Não é a mesma coisa. Vocês não são tão delicados!

(Carretel): Não percamos o fio da meada!

(Tesoura): E aquele barulho repentino lá nos fundilhos avisando que a calça descosturou? Não dá para deixar um alfinete espetando por lá, não é mesmo?

(Botões): Ah ah ah ah ah!!!!

(Dedal) – Eu sei como dói uma agulhada...

(Tesoura): De mais a mais, quem procura um alfinete? Nem no chão, nem em um palheiro. Perde um, pega outro na caixa.

(Alfinete) – Ora...

(Ziper): Não feche o tempo, seu Alfinete! Preste atenção e veja como as agulhas são diversificadas e úteis.

(Alfinete): Então fale, dona Agulhinha!

(Carretéis): Mas vá direto ao ponto. Sem exagerar, porque suas obreiras quando se metem a fazer fuxico, a vizinhança corre perigo.

(Agulha): Nem sei por onde começo! Somos uma família tão grande e tradicional.

(Carretel) - Vai alinhavando...

(Alfinete): Comece falando das agulhas que furam bexigas em festas infantis!

(Botões): Ah ah ah ah ah!!!

(Zíper): Ah! Não alfinetem...

(Tesoura): Essa conversa está muito cortada...

(Pano) – Calma, gente. Vamos por panos quentes.

(Agulha): Bem, eu tinha uma antepassada que era bem grossa, mas gente finíssima. Costurava couro. A meninada adorava. Fazia bolas de futebol. Hoje estão aposentadas.

Só que tem gente má. Usa a agulha para fazer isso que o Alfinete falou. Eu ficava muito triste com um senhor que tinha uma agulhona para furar a bola dos meninos na rua.

Eu via, quietinha, lá do balaio da dona Costureira e ficava com uma vontade de chorar.

O seu Alfinete até que tem razão. Minha família é muito individualista! Geralmente estamos sempre solitárias. Mas tem algumas de nós que trabalham em grupo.

(Alfinete): Que nem nós! Que nem nós!

(Tesoura): Mais ou menos né? Já viu alguém fazer tratamento de acupuntura com alfinetes? Corta essa.

(Agulha): Isso mesmo. Lá na China há familiares nossas aos montes. Então, os chineses aprenderam a usá-las em grupos para aliviar dores, males de coluna, TPMs e outras mazelas...

(Dedal) – Haja paciência pra aguentar tanta espetada!

(Carretel) – Não dói não, Dedal. As agulhas são bem fininhas. Minha tia Corda fez acupuntura por causa de seus problemas de sono.

(Dedal) – Ela dorme mal?

(Carretel) – Não, mas a-corda mal disposta...

(Botões, em uníssono): Ah Ah Ah Ah Ah!!

(Agulha) - Tenho outras parentas que tem buraquinhos que salvam vidas... Não fossem eles não se aplicavam injeções, nem se administrava soro. Ouviu, seu Alfinete?

(Dedal) – Posso meter o dedo onde não sou chamado? Você é parente também daquelas agulhas que costuram a pele?

(Alfinete) – Ai! Costuram pele? E isso não se chama tortura?

(Agulha) – Não. Chama-se sutura. São agulhas altamente especializadas.

(Zíper) – Verdade! Um irmão meu que trabalha na calça de um médico me disse isso. Tem tortas, grossas, afiladas, em formato de anzol... E parecem mesmo uns instrumentos de tortura!

(Dedal) - Credo! Estou ficando arrepiado!

(Agulha) – Mas salvam vidas.

(Linha) – A gente vai sempre junto, não é, dona Agulha?

(Agulha) – Verdade! Só fico um pouco chateada porque esse pessoal que usa jaleco branco nos tratam como descartáveis! Eles nos usam e jogam fora...

(Alfinete): Nós somos recicláveis, enquanto vocês, agulhas, quebrou tem que jogar fora mesmo!

(Zíper): Nessa caixa, tirando as linhas e o pano, todos nós somos recicláveis. Continue, dona Agulha.

(Alfinete) – Você não vai falar que também é usada para fazer o mal? Fala que usam vocês para se drogarem...

(Carretéis, cochichando): Que fio da mãe!...

(Agulha) – Verdade, Sr. Alfinete. Infelizmente, todos nós podemos ser instrumentos para o bem ou para o mal. Alguns irmãos de dona Tesoura já cometeram crimes...

(Tesoura, derramando uma lágrima) – Nem me fala... Vamos cortar essa parte?

(Pano) – Tesoura, me usa aqui senão você vai enferrujar...

(Agulha): Bom... Vamos falar de coisas bonitas... Tem um lado da família que trabalha aos pares. É a turma do tricô. Nas mãos das avós fazem roupas lindas... Casaquinhos, sapatinhos, meias... Tem vovós muito famosas por causa das roupinhas que fazem. Vocês conhecem a vovó da Chapeuzinho Vermelho? Foi uma das minhas parentas que fez aquela roupinha. Essas minhas primas geralmente são coloridas, e tão altas e magras que são consideradas as top models da família.

(Linha) – Mas você também têm umas parentas bem feinhas, que nem ponta têm! Parecem umas bruxas narigudas. Eu vi na revista de Trabalhos Manuais da Dona Costureira.

(Agulha) – Ah! Aquelas primas de nariz adunco? São as agulhas de crochê. É um tal de ponto rococó, ponto pipoca, jasmim, abacaxi, ostra, picô...

(Alfinete): Picou quem?

(Botões): Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!!!

(Agulha): E ainda nem falei da mais conhecida de nossas parentas, a agulha de costura, da qual sou um típico exemplar. Emendo e remendo...

(Linhas) – Sem nós você não emenda nada...

(Pano) – E como remendar sem um pedaço de mim?

(Zíper) - Fechem a matraca!

(Agulha) - ...Não pinto, mas bordo. Ajudo o pessoal a juntar os trapos...

(Pano) – Olhe lá como fala! Respeite nossos parentes pobres. E agulhas também enferrujam.

(Tesoura) – Vamos cortar essa discussão. Dona Agulha quer dizer que ajuda o pessoal a se casar. Isto é, juntar os trapos.

(Pano) – Ah!

(Carretel) – Pessoal, vocês estão enrolando...

(Agulha) – É sim! Vocês estão me interrompendo demais. Desse jeito eu acabo perdendo o fio da meada!

(Alfinete) – Tá vendo só como é bom ficar paradinho?

(Agulha) – Seu bobo! Se eu me perder, tenho uma prima para vir me salvar.

(Dedal) - Que prima? Outra para me cutucar?

(Agulha) – Não... É a agulha da bússola! Ela sempre sabe para onde se deve seguir. Ela guia os escoteiros, os navegantes... Ela também anda meio esquecida depois que inventaram o tal de GPS. Desse jeito, logo estaremos todas aposentadas!

(Dedal) - Vocês não têm é sossego. Devem ter bicho carpinteiro. Estão sempre trabalhando?

(Agulha) – Não, na verdade não somos só formiguinhas trabalhadeiras. Tenho uma parente metida a cigarra.

(Todos) - Como assim?

(Agulha) – Ela parecia o Alfinete. Ficava parada, esperando o disco girar enquanto ia ouvindo a música.

(Alfinete) - Pode provocar que não vou me mexer...

(Linhas) – Dona Agulha! Explica melhor isso. Agulha cantora? O que é isso?

(Agulha) – Houve um tempo em que existiam os fonógrafos...

(Dedal) – Isso também machuca?

(Botões , em uníssono) - Ah ah ah ah ah!!

(Agulha) – Não conhecem o fonógrafo? Os toca-discos?

Todos se entreolham...

(Agulha) - Não faz muito tempo, havia discos bem maiores que os Compact Disc, os atuais CDs... Os discos tinham umas ranhuras em que a agulha passava e saía o som. A voz dos cantores. Ah! Se não fosse a agulha não tinha música.

Todos continuam se entreolhando.

(Agulha) – Que cara é essa, pessoal? É verdade! Havia até agulha de diamante!

(Tesoura) – Uau! Tecnologia de ponta! Deve ser parenta minha também...

(Alfinete, rindo) – Estou imaginando uma agulha como fone de ouvido.

(Botões)– Ah ah ah ah ah!

(Agulha) - Então! Viram como sou útil? Até fico chateada em não ir passear nos vestidos e roupas que preparo, como a linha e os botões, mas faço a felicidade de muita gente. Acalentei muitos sonhos de namorados com a música, agasalhei muita criança e idoso com frio, ajudei gente perdida a encontrar caminhos...

(Carretéis) – Puxa, dona Agulha! Quanta história a gente não sabia de você!

(Zíper) - Achávamos que a senhora era arrogante. Passava por mim, pelo pano e pelos botões e nem parava para uma conversinha.

(Dedal) - Agora que a conheço melhor até que gostei... Vou reclamar menos!

(Linha) - Quando costurarmos meias, não vou mais perguntar se você está me levando para uma pizzaria, tá?

(Tesoura) – Xi! Pessoal! Corta a conversa!A Costureira está chegando!

(Todos) - Que bagunça fizemos!... Vamos nos arrumar.

(Alfinete) - Eu não fiz bagunça, nem preciso me arrumar... Continuo espetadinho no mesmo lugar.

(Zíper) – Fecha essa boca!

Todos mostram a língua para o alfinete e ficam quietos.

A costureira abre a caixa, desenrola a linha do carretel, corta com a tesoura, coloca a linha na agulha, tira os alfinetes do pano, coloca o dedal e começa a pregar botões, acenando ao zíper como a dizer: “Espere um pouco que já chega sua vez!”