Pucca, o Sapo e a Menina que escondia desenhos

Do lado de lá das montanhas, num vale por elas cercado, vivia uma Menina de personalidade forte e de grande talento, cujo dom e personalidade contrastavam com sua pequena estatura. Vivia só do lado de lá não por vontade própria, ainda que se adaptara muito bem à distância das nem sempre agradáveis companhias, mas por ter sido banida do reino por uma princesa avessa à alegria que costumava espalhar quando lá vivia.

A Menina tinha o dom de transformar em traços tudo o que via pela frente. Na natureza tudo lhe servia de inspiração: a chuva que batia em sua janela, as nuvens que assumiam formas engraçadas. Nem mesmo o nó da madeira escapava de sua imaginação. Quando criança, já brincava com seu irmão de enxergar monstros e criaturas nas portas dos armários e de coelhos chupando pirulito ou andando de bicicleta lá em cima, no céu. Tudo que lhe vinha à mente era, em pouco tempo, estampado a lápis nem que fosse em papel de pão.

Assim cresceu a Menina, que entre uma travessura e outra, ia juntando, além de cicatrizes nos joelhos, amigos, na maioria das vezes, por onde passava. Nem por isso seu temperamento tornou-se mais ameno: havia quem não escapasse de sua língua rápida e afiada, é verdade! Mas aqueles que a conheciam sabiam que diante da falsidade e da mentira a reposta certeira e cortante era inevitável.

Costumava desenhar flores para mulheres solteiras, cavaleiros casados e para os doentes. Às primeiras, para que não perdessem a esperança de encontrar um amor, aos segundos para que não se esquecessem de reconquistar a cada dia o amor já conquistado e aos terceiros para que enxergassem muito além da doença a cura e a volta a uma vida saudável e feliz. Já as crianças ganhavam grandes aves coloridas em folhas gigantes que alçavam vôo quando os guris corriam pelos campos a puxando seus barbantes.

Quando a Pequena Menina encontrou o grande amor de sua vida, seu coração transbordou de sentimentos, seu sorriso ganhou mais brilho, seus desenhos mais cores e alegria. Porém, foi a gota que fez entornar o balde da princesa bastarda de olhos puxados filha do rei. Onde já se viu? Ela de sangue nobre não ter pretendente enquanto a Menina plebéia de pele morena sim? Bastaram, então, poucos dias para que a princesa bastarda – que tinha mais de bastarda do que de princesa – convencesse papai rei de que uma plebéia de sorriso cativante, olhar sincero e sem papas na língua representava perigo aos domínios e aos interesses dos donos do reino, isso sem falar nos seus desenhos que traziam alegria e sonhos a quem os vissem, e que por bem seria, se banissem a pequena, ou melhor, se atribuíssem a ela a responsabilidade de “importante tarefa” em terras afastadas.

E assim fizeram com que partisse a Menina que, por ordem do rei, foi viver só, do lado de lá das montanhas onde a paisagem e o ar lhe fariam companhia. A menina apesar de pequena e talentosa também era geniosa e neste dia jurou a si mesma que não mais mostraria seus desenhos a ninguém. Para trás, além dos amigos, deixava seu dom a descansar no agora vazio cavalete, seus pincéis companheiros de dias felizes e seus desenhos fechados no velho baú. Deixava também a saudade naqueles que tiveram de aprender a viver longe daquela que, outrora, não precisava correr atrás das borboletas: de tão bem cuidado e florido que era seu jardim, cabia aos pequenos seres de asas coloridas vir até ele.

Em seu novo mundo, entregue a seus pensamentos, lágrimas chegaram a correr dos olhos da Pequena, mas não muito tardou para que novas criaturas se encantassem com a pequena e se tornassem seus novos amigos. Enquanto seu algoz enviava tarefas de sua responsabilidade para que fossem realizadas pela Menina, a notícia e a curiosidade sobre a nova moradora do vale se espalhava dentre os mais exóticos habitantes da floresta.

Uma figura de doze centímetros de altura logo se aproximou da Menina. Seu nome era Pucca, uma espécie de fada vinda do outro lado do mundo que vivia a sorrir mesmo em dias de chuva, e cujo coração se acendia na presença de pessoas que radiassem amor. Não se faz necessário dizer que a amizade entre as duas não demorou a nascer e que, na companhia da Menina, o coração de Pucca nunca mais deixaria de brilhar. Pucca contava à Menina histórias de outras terras e épocas remotas: de como cavaleiros haviam derrotados monstros gigantes, de como reis bondosos conduziam seus súditos fiéis ante a ameaças de tiranos e até mesmo de como o deus Marduk criou o mundo depositando a terra e o céu sobre o corpo e a cabeça do dragão Tiamat. A Menina ouvia tudo com atenção e na sua cabeça tudo era transformado em imagens que freqüentemente eram desenhadas no chão ali mesmo, para logo depois serem apagas com um simples espalhar de grãos de terra.

Às vezes recebiam a visita de alguns amigos que vinham lhe ver. Traziam notícias sobre o reino, faziam piquenique, mas logo partiam antes de escurecer, pois não tinham permissão para demorar. Numa dessas visitas lhe trouxeram uma nova companhia: um sapo falante. O Sapo era somente um sapo que, de tão preguiçoso e tagarela, fora deixado para trás pelo seu próprio bando. Adorou a idéia de viver com a Menina, mais ainda de saber que seus dias de comer insetos haviam chegado ao fim: a partir de então se alimentaria somente de Cheese Salada e Coca-cola.

Assim se passavam os dias, entre uma história e outra, entre uma lembrança e outra, a Pequena a trabalhar, Pucca a brilhar e o Sapo a tagarelar. Até que um dia chegou ao vale a notícia de que o mundo estava se acabando. O reino despertara cinzento, o mundo estava a desbotar e que o céu assim como o sol se tornara gris.

Continua...

ARLEI NASCIMENTO
Enviado por ARLEI NASCIMENTO em 24/01/2008
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