TUDO VALE A PENA
(Episódio verídico)
O episódio a seguir adquire importância, considerando-se o contexto: uma turma indisciplinada do terceiro ano do Ensino Médio e, conseqüentemente, com baixo rendimento escolar.
Naquele dia, havia na sala de aula cerca de 30 alunos, jovens entre 17 e 20 anos, alguns sentados, muitos de pé, conversando em grupinhos e rindo alto. O professor de Literatura entrou. Os alunos ignoraram a presença dele, continuando a tagarelar.
Sem se alterar, o professor colocou a maleta sobre a mesinha de canto, vestiu o avental e foi ao centro do tablado. Respirou fundo. Começou então a percorrer toda a extensão do tablado, de um lado para o outro, sem olhar para a platéia dispersa, e declamando em alto e bom-som:
Ó mar salgado, quanto do teu sal
são lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram...
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
para que fosses nosso, ó mar!
Enquanto ele recitava, tomados de surpresa, os grupos iam se dissipando. Aos poucos, cada aluno retomava o seu lugar. A turma permaneceu em silêncio absoluto. Nesse momento, o professor parou no centro do tablado e concluiu:
Valeu a pena? Tudo vale a pena
se a alma não é pequena!
(...)
Ana Paula, que ocupava uma carteira no centro da primeira fileira, levantou-se e começou a aplaudir o professor. A seguir, os demais alunos puseram-se de pé, repetindo o gesto dela.
Instantes depois, o professor gesticulou, pedindo a todos que se sentassem. E prosseguiu, em tom normal de voz:
— A partir de hoje, vamos estudar a obra de Fernando Pessoa, um dos maiores poetas do modernismo português.
Segundo a aluna Ana Paula, que me pôs a par do episódio (na época, eu ocupava a Direção), dali em diante o aproveitamento nas aulas de Literatura passou a ser realmente significativo.
* * *
(trecho do poema MAR PORTUGUÊS de Fernando Pessoa)