A Seca vai secar minhas lágrimas.

Meu Nome é Murilo Alves de Melo. Sou um menino como muitos outros; pulo,corro, escorrego, subo em árvore, jogo pedra, empino papagaio, jogo bola de gude, mas não passo o dia todo só nisso. Além de brincar, estudo e ajudo meus pais nos serviços de casa.

De tanto fazer travessura tenho no corpo marcas que sinaliza o quanto já aprontei, mas, também há marcas de muito trabalho mesmo. É que nós moramos na área rural, e tenho como tarefa diária: ir até o barreiro buscar água para os animais, encher as vasilhas das outras crias de casa, e também tirar capim e palmas para fazer ração.

Minha família é grande. Meus pais, nove irmãos e uma irmã. Do lado direito da nossa casa fica a casa dos meus avós; mais adiante, ficam as casas dos meus tios e tias. Todos moram num pedaço de terra bem grande, mas que é terra de herdeiro.

Um dia perguntei pra meu pai o que queria dizer: Terra de herdeiro. Ele me explicou que era um chão onde muita gente tinha direito; passava de pai para filho, ou outros que fossem nascendo.

Do lado esquerdo, um pouco afastado da nossa casa ficam os currais onde ficam algumas cabeças de gado, uns bodes e cabras, um cavalo e dois jumentos; um galinheiro e um chiqueiro. Atrás de casa, meu pai com a ajuda dos meus tios cavou um barreiro. Dali todos tiram água pro gasto. Quer dizer que a água dali só serve para os bichos de para lavar roupa e molhar as plantas. Antigamente até se usava da água do barreiro para beber e para cozinhar. Hoje como as coisas estão melhorando, na maioria das casas há cisternas onde toda água da chuva é levada a cair dentro dela para na época do estio, as famílias poderem usarem. Essa é a água que vem do céu. É limpinha, gostosa e sem doença.

Meu pai me disse que quando ele era pequeno, muitas pessoas morriam por doenças causadas pelo uso de água contaminada. A água do barreiro é água que vem da chuva, mas cai primeiro no chão, sai arrastando tudo que é sujeira para dentro. Depois de um tempo, a água vai ficando esverdeada. O barreiro é moradia para sapos e rãs. Além desses animais, há outros que também usam a água para procriar.

Da porta da cozinha da nossa casa há um morro conhecido por Morro do Juá. No inverno Deus coloca vestido em todas as plantas e árvores. No verão, o sol resseca tudo e da minha casa a única árvore que resiste com folhas sempre verdes é o pé de juá; que fica lá em cima, sozinho, como que zelando pelas outros seus irmãos que estão como que esqueletos à espera das próximas chuvas. Daqui vejo o morro vestido, todo de verde, brilhoso, lindo de se ver. Enquanto os dias passam as folhas vão mudando de cor; depois caem e por fim ficam os galhos como de algo sem vida. O pé de juá também serve de sombra para os poucos animais que teimam em ir para aquelas bandas.

No verão, a terra seca, fica cheia de rachadura como um rosto com as marcas do tempo. Parece que o sol que dá vida também trás a morte. Cozinha tudo a sua volta.

Esse ano até o riachinho que passa atrás da Fazenda do Riacho Fundo secou. Vi pela primeira vez meu pai coçar a cabeça e dizer pro meu avô que talvez fosse já tempo de desfazer-se de algumas cabeças de gado. O barreiro tá secando e parece que não vai dá até a próxima chuva.

A chuva é algo muito importante, mas poucas pessoas sabem realmente o valor que ela tem. Ter sede e não poder ir até a jarra e tirar um caneco, colocar num copo pra depois beber despreocupado é algo ruim; chega a doer.

Ouvir os bichos pedindo água, olhando pra nós com aquele olhar quase falando e a gente não poder fazer nada; chega a cortar o coração. Ter que vender nossos animais que lutamos tanto para criar. Vender por qualquer preço para não ter que vê-los morrendo aos poucos e depois enterrá-los. Há pessoas que soltam seus bichos, pra quando eles morrerem fiquem por onde o ¨corpo tombar¨. É por isso que em época da Seca encontramos tantas carcaças por aí. Os olhos dos adultos já não derramam lágrimas, parecem que a Seca também secou as lágrimas, mas a dor do coração deles está escondida; tenho visto essa dor escondida no coração do meu pai. Meu coração de menino também sofre. Não posso fazer nada. Só faço chorar escondido. Um dia eu sei que a Seca também vai fazer minhas lágrimas secarem.

Na escola, a professora faz o possível pra nos ensinar, mas as crianças sofrem tanto que não adianta apertar muito se não a gente não agüenta. No inverno, é bom que a chuva venha, mas também a coisa fica difícil; é que os carros da escola não entram e a gente tem que andar uma lonjura até chegar num lugar seguro onde os carros passam sem atolar. A gente já chega cansado porque o dia começa cedo. Lá pelas cinco da manhã estamos ajudando papai nas tarefas de casa pra ele não ficar sobrecarregado. Mamãe também dá um duro daqueles: lava, passa, cozinha; cuida do bebê e de meus avós que são velhos. Ela também vai à feira. Todo mês no dia de receber dinheiro vai ao mercado fazer as compras; paga o que deve, faz força pra comprar tudo porque se faltar algo fica longe vir buscar. Aí, tem que pegar uma moto-táxi, ou vir a cavalo. Não vale a pena.

Queria que um dia tudo isso mudasse e outras crianças não passassem pelo que hoje eu passo. Queria que as crianças no futuro acordassem pela manhã com confiança de que dias melhores viriam. Que pudessem todos os dias do ano encontrar água para beber e comida para comer. Queria que nenhuma criança visse seus animais morrendo de sede e fome. Que nenhuma olhasse nos olhos dos seus pais e vissem uma dor escondida; a dor de não saber como será o amanhã. Queria que nenhuma criança tivesse que trabalhar por medo de passar fome; que trabalhasse por prazer em exercer uma atividade, pois trabalho não faz mal; o que faz mal é a dor que a Seca trás.

Um dia, quem sabe, tudo vai ser diferente... Depende de Deus, depende dos homens de hoje, depende dos homens de amanhã... Eu sou um homem do amanhã.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 25/03/2009
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