–O que? – Gritou Clara assustada no meio da aula de
matemática. Se já não lhe bastassem as notas baixas,
Clara agora seria chamada de insolente por dona Albertina,
a temida professora de matemática.

Todos pararam de susto. Metade da turma olhava para Clara

e a outra metade para a professora. Dona Albertina, que resolvia
um problema de matemática cheio de x e y na lousa, parou repentinamente,
logo após o grito fazê-la escorregar o giz com o
resultado de X= 23. Ela se virou para a sala de aula, que estava
repleta de alunos e, com os olhos pegando fogo, como uma águia
feroz, localizou Clara no canto da sala. Com os olhos diretamente
colados na menina, a professora parecia se preparar para um
daqueles combates típicos de um fi lme de luta.

Dona Albertina era daquelas professoras que são consideradas

parte do patrimônio de um colégio. Pense naquele tipo
de professora que começou a lecionar, ensinando os primeiros
habitantes da terra. Esta era a nossa querida dona Albertina. No
caso do Colégio Conexão, não se sabia mais onde começava o
colégio e onde acabava dona Albertina. Ela era a própria xerife
do local, já que era a grande controladora de todos os acontecimentos
dentro do grande universo do Colégio Conexão. Ela era
a força propulsora de todas as grandes decisões daquele lugar.
Era ela quem comandava, era ela quem ditava as regras e era ela
que punia com severidade quando era necessário, mas também
era ela quem disciplinava todos aqueles estudantes, ano após
ano. Dona Albertina era aquele tipo e professora “das antigas”,
que comandava todos com rédeas curtas.

No entanto quem via aquela senhorinha, pequenina, que não

tinha mais que um metro e quarenta de altura, de cabelos brancos
encaracolados, sorriso no rosto e óculos na ponta do nariz,
nem imaginava o general que se encontrava ali dentro dela. Ela
parecia uma daquelas vovozinhas que fazem tricô no comercial
de achocolatado; tão doce, tão meiga, mas tão equivocada essa
primeira impressão.

Nada acontecia no Colégio Conexão sem que dona Albertina

tomasse conhecimento. Clara desconfi ava que ela sempre
soubesse das coisas antes mesmo delas acontecerem. Seria isso
possível? Bom, indagações à parte, se ela sabia ou não, isso já
era outra história.

Dona Albertina, um patrimônio da humanidade, dentro de

uma sala de aula com a embusteira Clara? Óbvio que isso não
iria acabar bem. Voltando à sala de aula, dona Albertina respirou
e partiu em direção a Clara. Em alto e bom tom, a professora
questionava Clara com sua voz rouca enquanto, passo a passo,
aproximava-se da menina.

– O que? – Perguntou severamente a professora que detestava

ser interrompida. E repetia, perguntando num tom um pouco
mais alto.

– O que?

Enquanto dona Albertina seguia fi rmemente em direção a Clara,
os outros alunos se enterravam em suas carteiras. Se fossem
gatos, naquele momento, todos estariam colados no teto, aproveitando
suas unhas afi adas de modo a fi xar-se no concreto cinza.

– O que?

Agora, além de se esconderem, os estudantes pareciam também
não respirar, afi nal de contas, o que todos queriam naquele
momento era sumir, ou simplesmente fi car transparentes. Quem
respirasse corria o risco de entrar no foco de dona Albertina, o
que seria bem pior, pois qualquer um poderia se tornar também
um alvo da professora que, na melhor das hipóteses, iria matar
Clara. Não, não é pra tanto, mas era exatamente isso o que parecia
estar prestes a acontecer.

Era possível cortar o ar daquela sala de aula com uma faca.

Era possível ouvir os passos de dona Albertina em qualquer lugar
do planeta. Cada passo da pequena senhorinha parecia um
estrondo gerado por um gigante monstruoso. Naquele silêncio
medonho da sala de aula, era possível ouvir os pensamentos dos
estudantes, mas ninguém pensava, para não correr o risco de
interromper dona Albertina.

Se existia um grande pecado no mundinho do Colégio Conexão,

este pecado era interromper dona Albertina. Se existia um
pecado entre os céus e a terra, “unzinho” só que seja, esse seria o
pecado de atravessar o caminho da severa professora. Podia até
parecer que dona Albertina estava irada, fora de si, sem controle,
mas não. A professora estava calma e focada em seu caminho até
a insolente menina.

“Xiiiiii...”, pensava Clara, enquanto dona Albertina se aproximava.

“Caramba, dessa vez eu me dei mal!”
Mil coisas passavam pela cabecinha criativa da menina, que
se esforçava para manter o semblante calmo e corajoso, enquanto
pensava compulsivamente. “Como vou me safar dessa agora?
Posso me jogar no chão e fi ngir que estou passando mal! Não,
muito batido. Posso dizer que sonhei com ela. Xi... Melhor não!
Seria um pesadelo. E pra piorar, Clara solta um sorrisinho maroto.
Posso dizer que dormi, simples assim, digo a verdade! Mas
aí ela me mata mesmo! Já sei! Perda de memória... É batata! Mas
ela não vai cair nessa! Ai, ai, ai, socooooorro!”

Enquanto todos esses pensamentos tumultuados passavam

pela cabeça de Clara, dona Albertina prosseguia e prosseguia e...
“Caramba!”, pensou Clara, “Morri!”.
– O que? – Repetia compulsivamente a professora, cada vez
mais e mais alto e ainda mais e mais perto.
– O que foi que a senhorita não entendeu?
– É... – Gaguejou Clara.
– É o que senhorita?

Clara respirou fundo, confi ou em toda a sua criatividade em

criar histórias, pelo menos era o que seu pai dizia, e levantou-se
interrompendo, de novo, a professora.
– Desculpe interromper, dona Albertina... – Soltou Clara
muito confi ante, enquanto se levantava da carteira. Parou por
um segundo e, olhando a professora de cima, apesar de ser uma
menina pequena para seus treze anos, disse com toda segurança
do mundo:

– Dona Albertina... – Clara olhou fi xamente nos olhos da

professora e pensou: “Existem três formas de se enfrentar um
inimigo. Um, fuja! O que é impossível nesse momento. Dois,
lute! Bem que eu poderia dar uma surra na velhinha, mas melhor
não! E três, transforme-se no oponente! Bom, é nessa que eu vou!
Mesmo que me custe a cabeça, ou melhor, uma suspensão”.
Cheia de confi ança, a pequena menina de cabelos de trancinhas
começou a falar calmamente soltando as palavras num
tom adocicado:

– Dona Albertina! – E pausadamente prosseguiu: – Eu...

Só... Estava...
– O que, senhorita?
Enquanto falava, garota esperta como era, Clara maquinava
um jeito de sair desse aperto, no qual tinha entrado. Muito
brincalhona, a menina encontra a solução com leveza e alegria.
Sorridente e sem peso nos ombros, a menina respira fundo e,
com um ar de senhora da razão e do juízo, dispara:

– ... Eu estava nada, querida mestra, eu precisava mesmo ter

uma conversa muito séria com a senhora. Olha só, dona Albertina...
Nesse momento, Clara, a menina mais atrevida deste mundo,
vai em direção à lousa.
– O que eu quis dizer é que tudo isso aqui é...
Clara pega um pedaço de giz, olha a lousa e começa a escrever
sobre as anotações da professora.
– Preste bem atenção nisso, dona Albertina.
Clara se volta para a lousa, e com irreconhecível superioridade,
presta-se a “dar aula” para a professora.
– Dona Albertina, eu simplesmente não sei o que fazer com
isso: 2X sobre 27N somado a 5Z nos leva a que? Não consigo
entender nada. Eu vejo a senhora aqui todas as semanas tentando
me ensinar um simples problema de matemática, mas...

E com um jeito extremamente sofredor e teatral a menina

dispara:
– Mas... Mas... Eu não aprendo nada!
Clara andava de um lado para o outro, em frente à lousa, de
forma impaciente. Em alguns momentos parava, batendo o giz
sobre a testa. A menina parecia se esforçar para entender qual
seria a melhor forma de resolver aquele problema, mas o que
tentava, na verdade, era buscar outras formas de se safar da
suspensão. A menina voltava a caminhar em frente à lousa, mas
subitamente parou, olha para o chão, e desconsolada perguntou
à professora:

– Dona Albertina, esse é um problema simples, não é?

Dona Albertina, um tanto quanto abismada, e com um ar de
desdém de quem já havia ouvido muitas desculpas esfarrapadas
em tantos anos de magistério, concordou com Clara, ao fazer
um movimento afi rmativo com a cabeça. A professora já tinha
ouvido de tudo nessa vida, mas aguardava pacientemente para
ver até onde Clara podia chegar.

– Como posso eu, uma garota tão esperta, inteligente e criativa,

fi lha de um escritor reconhecido e de uma historiadora premiada
ser tão tapada para um probleminha de matemática?
Clara bate o giz na lousa como se pensasse.
– Vejam e pensem comigo – disse Clara dirigindo-se à turma,
que neste momento, assistia à sua aula, e parecia até mais
interessada do que estava antes, pela aula de dona Albertina.
– Como eu posso chegar em casa e dizer aos meus pais que
não sei nada de matemática?

Olha fi xamente a turma, como se esperasse uma resposta.

– Como? Digam-me!
A sala de aula era um silêncio só. A menina sabia que ninguém
se atreveria a dizer uma palavra ali e, assim, ela seguia com
sua cena.
– E quando vejo a gentil professora, que tanto se esforça pra
me ensinar, usando todos os seus artifícios de grande mestra
para me passar seus conhecimentos e ainda assim eu não aprendo
nada, vocês sabem o que eu penso?

Dramaticamente, Clara vai em direção à turma, aponta a um

dos alunos e pergunta de modo sério:
– O que?
E depois para outro.
– O que eu penso?
E outro:
– Penso o quê?
E mais um:
– O que?
E gritou assombrada, fazendo uma grande cena teatral:
– O que? O que mais eu posso fazer?
Clara vai em direção à dona Albertina, passa o braço direito
sobre os ombros da pequena professora e, com lágrimas nos
olhos, diz:
– O que? O que? O que, dona Albertina?

A professora olha bem no fundo dos olhos de Clara, e com

toda sabedoria de uma professora com quarenta anos de salas
de aula, fala em alto e bom som:
– Palmas à senhorita Clara! Será uma estrela dos palcos de
todos os teatros de nosso país. Vejo que não precisará de teste
vocacional, senhorita.

Todos aplaudiram. Uma algazarra começou na sala de aula.

Clara, muito brincalhona, agradeceu aos aplausos. Dona Albertina
censura a todos, que cessaram a algazarra. Com um olhar
penetrante a professora, praticamente, forçou Clara a se sentar
em sua carteira. E pensar que dona Albertina nem tocou na menina.

O olhar severo e controlador da professora era penetrante

e hipnótico. Tinha-se a sensação de que dona Albertina era capaz
de controlar nossos pensamentos.
– O que a senhorita esperava com essa cena? – Indaga a
temida professora.
– Eu...

Dona Albertina nem espera uma resposta.

– Se safar? Era esse seu desejo verdadeiro? Ou era simplesmente
aparecer e tirar algumas risadinhas de seus amigos?
Dona Albertina deu as costas e seguiu em direção à lousa,
calmamente.
– Está suspensa, senhorita!
E então, dona Albertina virou-se para Clara e olhou fi xamente
em seus olhos e continuou:
– Causa e efeito, senhorita! Você tem todo o direito de tentar...

Mas esteja pronta para receber de volta o que plantou!

Clara mordeu os lábios e baixou os olhos meio sem jeito.
A menina realmente acreditou que essa explicação descabida
e todo esse teatro dariam certo. Juju, sua melhor amiga desde
sempre, cochichou baixinho ao seu lado:
– Valeu a tentativa, amiga! Adorei a cena!
As duas caíram na gargalhada e dona Albertina voltou-se
para elas. Por cima dos pequenos óculos, a professora soltou um
olhar de censura.
– Posso continuar, senhoritas?
– Claro, dona Albertina. Sinta-se à vontade na sua sala de
aula!

E Juju sussurrou:

– Assim você vai ser expulsa!
Clara sorriu e, imitando a professora de uma forma engraçada,
chegou bem perto da amiga e disse:
– Causa e efeito, senhorita, causa e efeito! – As duas riram
baixinho.

Inteligente, perspicaz e criativa, Clara já tinha praticamente

um livro cheio de suas escapadelas, com desculpas para as mais
diferentes situações. Pois é, existe sempre uma boa explicação
para tudo o que fazemos nesse mundo, mas será mesmo que
podemos escapar? Uma coisa leva a outra, uma porta à outra e
uma argumentação à outra. Clara iria descobrir que nem toda
escapadela vale a pena, que nem toda pergunta deve ser feita e
que nem toda explicação é bem-vinda, num mundo, como diz
dona Albertina, de causa e efeito.
   
Camila Prietto
Enviado por Camila Prietto em 03/03/2011
Código do texto: T2825946
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