RETRATOS DE INFÂNCIA - CAP. 3

O barulho estava ensurdecedor. Relâmpagos deixavam a noite como dia. Era possível ver tudo lá fora, bem clarinho, pela fresta da parede mal rebocada de nossa casa no bairro operário. Via quando mamãe acendia uma vela e rezava cantando em voz alta uma oração que eu não compreendia. Sei apenas que era uma reza pra acalmar a chuva. Não sei se funcionava, mas pouco depois a chuva barulhenta cessava e os ventos se acalmavam. Acho que deve ser sempre assim, uma tempestade quase nunca dura tanto tempo.

São poucas as cenas de minha infância que lembro e guardo na memória ainda muito vivas. Sei que naquela casinha quase derrubada por tantas chuvas e tempestades devia haver uma força que sustentava tantos obstáculos. Ainda ontem passei por aquela rua e olhei a casinha. Está lá, de pé ainda, firme, talvez agüentando tantas outras tempestades. Parei-me diante dela, com um azul claro desbotado pelo tempo e gasto por tanto sol. Fitei-me por alguns instantes diante daquele lugar, quando vi um menininho que pulava a janela que dá pra rua principal daquela esquina de tantas histórias. Ele trajava apenas um shortinho amarelo, magrinho como éramos todos nós e corria de um irmãozinho que vinha logo atrás para pegá-lo naquela brincadeira de pega-pega. Uma névoa cobriu-me os olhos e um engasgo tomou conta de minha garganta. Tive vontade de chorar, mas parece que algo me trava e eu apenas pude deixar soltar a imaginação. Voltei àquela noite de tempestade e recordei de quando eu saí a porta pra fora e vi caindo gelo do céu. É chuva de rosas, dizia mamãe na sua imensa sabedoria. Não podia falar que era pedra, pois assim a chuva não iria parar. Mamãe quase me arrancou o braço puxando-me de volta pra dentro de casa. Colocou-nos todos debaixo de uma mesa de madeira velha, que ficava encostada numa parede da cozinha, porque uma perna estava quebrada. Ali, se a chuva ou o vento levantasse as telhas, o maior temor de minha mãe, estaríamos bem protegidos.

Aquela tempestade passou rapidamente como todas as outras sempre passaram. O que demorou a passar foram as tempestades que nos acompanharam por toda a vida. Poucas rezas e velas souberam acalmar tantas turbulências. Mas a vida já não era mais a mesma, como mesma é a casa, a rua, as outras casas, as paisagens. Apenas mudou-se os personagens, exceto a Dona Raimunda, já com seus cento e oito anos, dizia, nascida escrava e filha de escravos, que ainda continuava sentada na sua varanda como fizera durante toda a minha infância, certamente ainda contado os casos do tempo do cativeiro, sempre com uma voz rouca e cansada, mas com a memória extremamente lúcida. Por um instante lembrei-me das suas histórias tristes de negros fugidos, que apanhavam no tronco, que sofriam todo tipo de torturas e castigos. Dona Raimunda dizia sempre a mesma frase ao terminar cada episódio: foi assim que o papai contou. Sua mãe parece que morrera ainda jovem, logo após o parto, de tanto ser castigada pelo feitor. Foi criada na fazenda com o pai, pouco antes da abolição.

As pedras da rua são testemunhas ainda vivas de tantos acontecimentos que o futuro não apagou. Posso viajar no tempo e voltar em meus pensamentos a tantos lugares ainda vivos na memória e inexistentes na realidade. São apenas momentos que ficaram presos no tempo, arraigados no pensamento e fortemente vivos numa alma ainda em ebulição de sentimentos e lembranças que povoam este lugar e estas pedras.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 17/05/2011
Reeditado em 28/04/2012
Código do texto: T2975757
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