LEMBRANÇAS DE UM JOVEM POETA

Lembranças de um jovem poeta

Podia parecer um pouco tedioso. Às vezes era. Nossa pequena São Luiz ficava a meia hora de Manhuaçu. A cidade mais conhecida da região. Estrada de chão. Quando se chega à cidade avista-se logo a praça, a igreja e o campo de futebol. Muitos diziam que São Luiz não era uma cidade, e sim um vilarejo. Chegavam até a dizer que era o bairro mais distante de Manhuaçu. Mas era uma cidade sim. Pra mim, era. Não tínhamos prefeito, nem padre. Padre Armando vinha de Manhuaçu aos domingos para celebrar a missa. Logo na entrada da cidade, ao lado da igreja, existia a venda do seu João, onde se encontrava de tudo: pão, leite, mantimentos, linha de costura e dedal, carnes defumadas, cigarros e fumo de corda, bebidas, balas e doces e até botinas. Todo mundo tinha conta lá.

A vila, de uma única rua, tinha ao todo vinte e três casas. A minha era a última. Dali pra trás, só mato. Morros que viravam montanhas ao fundo, até perder-se de vista. Todos os moradores se conheciam. Uma casa antes da minha, morou por muitos anos dona Mariana. A velha morava sozinha. Todos os filhos foram embora para Belo Horizonte. Nunca a visitaram. A não ser no dia da morte. E antes mesmo do enterro, a casa já estava à venda.

Uma semana depois, vi um caminhão descarregando uma pequena mudança. Um homem acompanhava tudo sem colocar a mão em nada. Dava ordens aos dois garotos que carregavam a mobília para dentro da casa. Parecia muito bravo. A casa era cercada por um muro baixo coberto por trepadeiras. No quintal do fundo, uma goiabeira solitária era a nossa alegria em época da fruta.

Olhei para a pequena varanda. Uma senhora e duas meninas estavam paradas, observando a mudança entrar. Uma delas parecia ter mais de dezoito, a outra, ao que pude observar de longe, devia ter a minha idade ou bem perto disso. Talvez quinze ou dezesseis no máximo. O cabelo preto, o rosto anguloso e os olhos azuis e um pouco puxados pareciam lembrar àquela senhora parada ao seu lado, mas em tempos bem distantes. Fiquei encantado, senti algo estranho, uma ansiedade misturada à alegria e ao medo. Algo terrível, mas ao mesmo tempo muito gostoso por dentro.

O tempo passou e nós, os garotos da rua, apelidamos a casa amarela de “convento”. Pois o único que saia da casa pela manhã e voltava à noite era o pai. Nunca víamos as mulheres. As meninas não iam nem para a escola.

Lembro que, em uma manhã, abri a janela enquanto me preparava para ir à aula e ouvi a mãe brigando com as filhas. Não entendi quase nada, apenas “Não vão e acabou.” Às sete da manhã, elas abriram à janela. Nossos rostos se encontraram. Ela usava uma camiseta branca, tinha alguma coisa escrita, uma foto de político eu acho. Tinha alguns furos. Pude observar. Aqueles olhos brilhavam. Azul forte, de tristes, por um momento me pareceram se alegrar. Ela sorriu. Vi seus dentes brancos. Duas “covinhas”, como dizia minha mãe, se formaram no rosto. Sorri também. Ia dizer “oi” quando a mãe apareceu e fechou a janela. Naquele dia não consegui me concentrar na aula. A hora não passava. Voltei para casa e fiquei o tempo todo na janela. Escureceu e eu só conseguia perceber que a luz do cômodo, que me parecia o quarto das meninas, vez ou outra acendia. Fiquei ali por mais de quatro horas. Meu pai chegou e, o delas também. Disfarcei quando meu pai perguntou se não ia dormir. Esperei que se recolhessem. Perto da meia-noite uma fresta se abriu na janela. Meu coração disparou. Ela apareceu. Sorriu como se soubesse que passei o dia todo esperando aquele momento. Vi a irmã ao fundo, rindo. Nos olhamos por menos de um minuto até que ela fechasse a janela. Isso aconteceu durante uma semana inteira, tempo em que minha vida parou para esperar aquele precioso minuto diário.

O tempo passou. Eu continuava vendo Vanessa pela janela. Só que agora conversávamos baixinho. E no final de um ano, eu já pulava o muro e ficávamos conversando bem pertinho. A irmã nos dava cobertura. E a qualquer barulho na casa fazia um gesto para que eu me escondesse no quintal. Quando isso acontecia, Vanessa não abria mais a janela. Acho que ficava com medo. Eu esperava tudo se apagar novamente e pulava o muro de volta.

Numa tarde quente de dezembro, enquanto a admirava pela janela, ela sorriu e gesticulou para que pulasse logo. Fui. “Papai e mamãe não estão em casa. Foram até Manhuaçu assinar uns documentos. Não sei o que é, mas só voltam no final da tarde.” Era a primeira vez em que o casal saia junto e deixavam as duas filhas sozinhas em casa. Naquele dia pulei também a janela. Sentei na cama com Vanessa, conversamos por horas enquanto a irmã preparava o almoço. Pela primeira vez peguei em suas mãos. Toquei seu rosto num gesto longo. Senti as “covinhas” se formarem. Naquele dia a beijei. Primeiro no rosto. Ela aproximou seus lábios dos meus. Nunca senti nada parecido. O coração bateu acelerado quando nossas bocas se tocaram. Então, os olhos se fecharam devagar, senti o toque dos lábios, de olhos fechados vi aqueles dentes brancos que tanto me chamavam atenção quando ela sorria. O coração bateu mais forte. Pude sentir o calor do corpo de Vanessa, a maciez e o arrepio em sua pele, seu cheiro. O coração pulsando intensamente, calor. Era como se pudéssemos saber o que se passava na cabeça um do outro. Arrepios. Alegria. Euforia. Pausa no tempo. Até que Vânia entrou correndo no quarto: “Papai e mamãe estão chegando”. Ela falou afoita. Nossas bocas se separaram, um fio molhado se estendeu entre nossos lábios partindo-se ao meio como se quebrasse um encanto. Os olhos se abriram assustados. As bocas não sabiam o que dizer, como se o beijo já houvesse dito o suficiente. Minhas pernas tremiam de euforia e de adrenalina, pelo beijo e pelo perigo que se aproximava, o que aumentou a sensação de prazer. Ainda assim, um sorriso surgiu nos lábios de Vanessa. Corri para janela, pulei e me abaixei assim que ouvi a voz da mãe no quarto. Vânia entrou. “O almoço está pronto; venham, acabei de tirar do fogo.” Quando percebi que não havia mais ninguém no quarto, pulei o muro e voltei para casa. Suava frio. Fui direto para o banheiro. Um banho gelado. Meu corpo, de tão quente, parecia soltar uma pequena fumaça no contato com a água.

No domingo pela manhã, o mesmo caminhão que eu vira chegar um ano antes se encostou à porta da casa amarela. Os homens desceram e carregaram tudo muito rápido. A família subiu no caminhão. Vanessa, abraçada a irmã, acenou discretamente, pude perceber as lágrimas escorrendo pelos olhos azuis. Chorei. Fiquei com medo. Meu coração às vezes parecia dar sinais de que pararia de bater. Não parou.

Naquela noite de domingo, escrevi minha primeira poesia:

Guarda para ti esse beijo

Menina linda dos dentes brancos!

Teu gosto, nunca mais esquecerei

Longe de mim, guarda teus lábios.

Marcelo Nocelli
Enviado por Marcelo Nocelli em 09/06/2011
Código do texto: T3024484
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.