RETRATOS DE INFÂNCIA - CAP. 9

As noites de Santo Antônio da Bela Vista costumam ser bem frias, principalmente no inverno. Até que durante o dia o sol forte ainda queima a pele dos mais desavisados. Ainda hoje quando trabalhava numa inspeção de campo pude senti-lo demasiadamente escaldante. Aquela rua de pedras espalhadas pelo chão, ainda pelos escravos como dizia Dona Francisca, eram as mais vivas testemunhas das infâncias várias que ali transcorreram e ainda transcorrem, embora de diferentes maneiras.

Em casa, na hora de dormir havia sempre um problema. Os cobertores eram bem simples, fininhos, e o vento passava por ele tranquilamente. Não havia muitos cobertores, mas a gente sempre dava um jeito. Dobrava-o, dormia com os irmãos e improvisava assim, uma noite mais agradável. Havia um cobertor de casal que era a excelência em si mesmo. Pai e mãe não o usava quase nunca. Ele era destinado aos filhos, pois era o que de melhor existia. Era um cobertor vermelho, de um vermelho bem vivo, com um furo do lado direito. Eu me lembro perfeitamente do dia em que o buraco foi produzido. Minha mãe que fumava excessivamente estava preocupada com meu irmão que estava doente. Ela não conseguia dormir e fumava na cama, quando o cigarro lhe escapou dos dedos. O buraco no cobertor ficou perfeitamente do tamanho do cigarro. Foram muitas as vezes que eu brinquei com esse cobertor e com aquele buraquinho.

Era comum ouvir o barulho do vento por entre o telhado, que não era vedado junto à parede. O vento frio entrava sem pedir licença e se instalava dentro da casa. Todas as casas da rua ainda são assim. Muitos são os barulhos que guardo na memória das noites em que algo acontecia naquelas ruas cruzadas. São barulhos de batidas de carro nos dias de festa, pois nos dias comuns aquelas ruas ficam dias sem ouvir o ronco de um motor. E quando um barulho de carro se ouvia há um quilômetro de distância, era uma gritaria das mães com os meninos na rua, com medo de um possível atropelamento que, felizmente, nunca aconteceu.

Aliás, minto. Aconteceu sim e foi comigo mesmo. Virando-me para o poste que, muitas vezes iluminou meus cadernos à noite quando lia redações para os colegas de rua, me veio à memória um atropelamento atípico. A casa da esquina de baixo estava abrigando uma mulher doente. Todos da rua todos os dias ia naquela casa visitar a senhora. Minha mãe era infalível neste cuidado com os vizinhos. Ficava horas conversando com aquela senhora doente, cuja memória minha, falha em lembrar-lhe o rosto. Numa dessas visitas saí de lá correndo, e como toda criança, não olhei para lado algum. Foi quando um ciclista igualmente distraído virou aquela esquina e colidiu comigo. Não sei onde o ciclista foi parar. Ali ele não ficou, e como era noite, naquela rua mal iluminada era uma dificílima missão descobrir o tal do fulano. Eu sei de mim, que fiquei jogado ao chão, aos gritos e com um dente a menos na boca. E ele era novinho, havia acabado de nascer.

Também me vem à memória o barulho de brigas entre vizinhos. Lembro-me uma vez de acordar e ver uma briga feia, em que dois rapazes que havia passado o dia todo no bar jogando sinuca, esfaqueavam um ao outro, ou punha a faca como diziam no bairro. Lembro de ter olhado por uma pequena abertura da janela, acordado. A faca era grande e pareceu refletir o brilho da lua cheia daquela noite trágica. Os gritos da mãe de um deles, o que foi parar no hospital ainda estão vivíssimos em minha mente. Não aconteceu nada grave, graças a Deus, mas sei que fiquei assustado com aquela violência.

Aos poucos o inverno ia passando e na primavera, as noites da cidade já eram mais agradáveis, e os finos cobertores já resolviam o problema. Eu dormia numa cama pequena, feita pelo meu irmão sob medida. O colchão era um pedaço de espuma cortado exatamente do tamanho daquela caminha, que se assemelhava muito a um berço, mas que dava o ar de cama de adulto. Minha noite era sempre tranquila, não havia preocupações de verdade. A vida era miúda, como miúda é a cidade e as oportunidades que ali existem. O menino apenas se preocupa com a escola e as brincadeiras da noite. Nada mais. Minha mãe não dormia tranquila quase nunca. Sei disso porque sempre que estava adoentado ou me levantava à noite, ela estava perguntando o que acontecia. Mãe parece que tem um radar e um dispositivo de liga e desliga, mas que não sai do stand by.

Amanhecia e sempre saíamos cedo da cama. Por nada mesmo, é que a gente sempre dormia cedo mesmo no fim de semana. Não havia nada pra nos fazer demorar nas noites da cidade. Tudo parava depois da vinte e uma horas. O mundo parecia terminar seu giro diário de rotação neste horário. Não se ouvia barulho algum naquelas ruas, raríssimas exceções. Assim frios e calores se contrastavam e se alternavam na esquina de minha infância, tal como em casa os dias quentes e frios iam e vinham independentemente da estação do ano. Dentro das casas os definidores do tempo vão além das estações do ano. São eles inúmeros, e quase sempre presentes num só dia. Amanhecia-se uma tempestade e terminava com uma suave brisa. Ou vice-versa.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 18/09/2011
Reeditado em 28/04/2012
Código do texto: T3225952
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