Os Últimos Dias - Ato III - Acusações

- Ele foi envenenado! - Concluiu um velho soldado graduado analisando o corpo inerte de Ivan, sem ousar tocá-lo. Pessoas velhas costumam ter um medo irracional da morte, e mesmo convivendo com ela acabam criando alguns rituais que não ousam desrespeitar. Era como se a morte ainda estivesse ali rondando, e poderia pensar em poupar uma nova viagem e já levar mais alguém consigo.

- Yius, bendita seja sua justiça! - exclamou o taverneiro aproximando-se perplexo do corpo agora inerte. Ao passo que Durio tremia. Suas mãos ainda em parte enroladas em sua inseparável toalha de limpar mesas que não estavam sujas. Mas seu curioso ímpeto foi prontamente impedido por outro dos guardas que o empurrou de forma violenta para próximo ao balcão.

- Parado ai velho! – bramiu o homem em clara censura, os olhos faiscando de ira - Não se aproxime!

- Eu só queria ver o que está acontecendo, garoto! – disse o taverneiro gorducho ainda sem compreender até que ponto aquilo tudo o afetaria. Em sua ingenuidade inocente, não se dera conta do quanto estava enrascado, pelo menos até as palavras duras chegarem aos seus ouvidos pela voz de outro oficial, este de maior patente, que irrompera pela porta como que atraído pelo cheiro da morte - Está acontecendo o óbvio Durio - Você o matou!

- Eu? Mas eu não! Como eu poderia?

- Fique calado, por favor! – tornou o mesmo estranho entrante, que invadia a taverna como se chegado de um pesadelo recém iniciado e que ainda estava muito longe de acabar. - Como teve coragem de fazer isso com um dos nossos? Envenenar sua bebida, para que ele morresse sem honra como um animal?

Dois dos soldados que ali estavam se entreolharam e então assentiram, concordando com as palavras do capitão. Ninguém além do taverneiro e do cadáver tocara naquela bebida. Durio ainda tentou se explicar gaguejando mais do que efetivamente dizendo alguma coisa, mas o capitão da guarda avançou em sua direção prestes a socar seu rosto se ele dissesse mais uma única palavra. Nesta altura ninguém na taverna comia coisa alguma, e algumas pessoas inclusive se punham a vomitar o que já haviam ingerido.

- Esperem - interrompeu finalmente Hector, abandonando sua xícara já vazia sobre a mesa e avançando em direção a tropa. O capitão o olhou de forma fria, e completou seu breve reconhecimento com um sorriso irônico de desdém. Conhecia Hector e sua fama. Não era ninguém que merecia qualquer atenção maior. - Que provas vocês tem de que o crime foi cometido por ele?

- E quem mais teria sido soldado? - perguntou a mulher de vermelho com lágrimas nos olhos e a voz rouca de tanto gritar. Entrecortada por soluços e gemidos, ainda se mantinha agarrada ao corpo de Ivan sem conseguir entretanto movê-lo daquela estranha posição que os espasmos haviam malignamente moldado - Ninguém mais tocou na bebida dele!

- Tem certeza moça? - inquiriu Hector novamente, ajoelhando-se e aproximando seu rosto do dela muito mais do que poderia sem constrangê-la. Fitando seus olhos castanhos, o guerreiro falava com aquela voz arrastada que acabava se tornando um suplício insuportável para a maioria dos ouvintes. Hector tinha seu próprio ritmo - Esta é uma acusação muito grave.

Estava do lado dele o tempo todo - respondeu ela com uma mistura de medo e coragem, como se estivesse apostando tudo naquele momento - Ninguém mais se aproximou de nós.

Hector sentiu que tudo aquilo soara um tanto falso, ou pelo menos forçado sob o seu ponto de vista . Porém, o seu vislumbre momentâneo já havia desaparecido em meio à confusão de idéias em sua mente, e dali só regressaria muito mais tarde. Com um dar de ombros, endireitou-se. Pondo-se de pé, dirigiu-se ao balcão após uma última olhada no corpo de Ivan e no capitão da guarda que o fitava interessado. Deixou algumas moedas para o taverneiro que estava sob custódia da Guarda e era incapaz de recolher seu pagamento e completou pouco antes de sair porta afora assoviando. - Então nada mais há de ser feito . A não ser a justiça.

Tanto a garota quanto alguns dos guardas ainda se detiveram por alguns instantes observando a atitude curiosa de Hector Taylor, filho do Grande General de Narun, até que a razão retornou aos seus corpos ou pelo menos a perplexidade diminuíra, e então levaram Durio sob custódia. O capitão auxiliara a mulher a levantar-se, e esta pesarosa levou seus olhos por um instante até o corpo de Ivan ainda prostrado. Prorrompeu em lágrimas, buscando conforto e encontrando os braços do oficial que afagou seus cabelos. E então sorriu.

Armageddon
Enviado por Armageddon em 09/02/2007
Reeditado em 22/02/2008
Código do texto: T374871