RETRATOS DE INFÂNCIA - CAP. 15

Meus olhos estavam mais atentos do que os ouvidos. Afinal ia ouvir algo do qual pouco sabia ou recordava dizer. Sentia um pulsar infantil do coração e um palpitar ofegante na alma tal qual uma criança à espera de um brinquedo ou do amiguinho que tanto esperava para brincar num dia de sol. Meu olhar se perdeu à esquerda para onde fica a casinha que um dia abrigou a mim e à minha família. Revejo todo o cenário enquanto Amália pigarreia a garganta e começa a ler a narrativa com sua voz rouca. Eu sentia um frio percorrendo meu corpo inteiro tal qual uma fiação elétrica que proclama de imediato a ausência da escuridão ao acender uma luz num quarto escuro. Meus olhos brilhavam enquanto Amália sorrindo, corria o olhar por sobre aquelas palavras e entreolhava a mim. Começou enfim.

Era uma tarde quente de verão quando fui acordada por um barulho de caminhão que parava na esquina. Levantei-me do meu sono da tarde, coisas de gente já idosa, e fui até a janela dar uma espiada. A primeira cena que vi foi a de um menino correndo e gritando de felicidade. Dizia:

__ É aqui mamãe? É aqui mamãe?

Repetia insistentemente quando aquela senhora desceu solenemente da boleia, olhou com um olhar carregado para aquela rua como que a imaginar como seriam seus dias e como viveriam naquela casa velha, que para sua família era agora o novo lar. Naquele dia Santo Antônio da Boa Vista se transformava em seu mundo. Olhou ao redor da cidade e viu os morros que a circundam. Seu olhar possuía uma profundidade tão ampla que seria possível observar dentro de toda sua alma, vasculhando seus dissabores e esperanças, que naquele momento pareciam ser tantos. Deve ter lhe passado mil coisas enquanto descia a escadaria do caminhão e observando com o olhar perdido e os ouvidos distantes dos gritos do pequeno Alfredo que agora insistentemente pedia:

__ Abre logo papai, quero ver a casa por inteiro. Fredo saltitava de tão contente, inocente ao mundo novo que para ele seria apenas um divertimento a mais, um lugar diferente e emoções novas a serem descobertas.

O pai, um homem simples, roupa surrada de trabalho no campo, um chapéu de palha gasto, sorria com a chave nas mãos. Era a primeira casa que habitariam sem ter que pagar aluguel ou trabalhar em favor de moradia. Claro que não era “aquela” casa! A casa da esquina estava lá, já há muitos anos. Já era uma casa antiga com as janelas de madeira e um imenso telhado. Mas para ele era a glória, era o lar, era o recomeço. Agora tinha um teto pra chamar de seu. Por mais que um recomeço e uma nova aurora se inicia, o ocaso traz sempre algo de nostálgico e um quê de insegurança se a luz brilhará forte durante o dia ou se trará nuvens carregadas de chuva. Enfim...

Lembro-me de descer a rua e cumprimentar os novos vizinhos.

__ Boa tarde gente. Sou Dona Francisca, moro naquela casa ali de cima, disse eu apontando para minha casa. Caso precisar de alguma coisa é só chamar.

Virei-me, sorrindo para Dona Lia e lhe ofereci alguns préstimos.

__ A senhora pode levar os meninos pra jantar comigo hoje. Até a senhora arrumar tudo no lugar vai dar muito trabalho. Eu faço questão.

Foi o primeiro sorriso que brotou dos lábios daquela senhora e fez condenar ainda mais suas marcas de expressão, tão evidentes apesar da idade pouca. Seu rosto enrugado estampava em sua face um milhão de sofrimentos, preocupações e desesperos. Mas o sorriso trazia de dentro da alma um instante de esperança que ali dentro estava guardada. Enquanto conversávamos, o pai dos sete filhos que já não estavam mais todos ali, alguns já eram casados, Sr. Pedro mostrava a casa aos meninos. Ele já a conhecera no dia da compra.

Para os meninos tudo era novidade, claro. Moravam no campo e vinham na cidade poucas vezes. Estudavam por lá mesmo, e mesmo assim numa escola muito simples, dessas que existem só pra não dizer que as crianças estão jogadas ao nada. Entrei na casa a convite de D. Lia, que, sem cerimônia alguma ia colocando no lugar os poucos pertences para recomeçar uma nova vida. A vida no campo, dizia ela, já havia chegado ao fim e não podia mais continuar. Moravam de lugar em lugar, migrando sempre por causa do trabalho do marido, o que fazia com que os meninos sempre ficassem prejudicados nos estudos. Agora os planos eram morar na cidade, escola boa, porque estudo, continuava, era a única herança que ela lhes podia deixar. O marido continuaria trabalhando, talvez agora também na cidade, mas não mais sacrificariam os filhos, ainda mais o pequeno Fredo, que este sim, se Deus quiser, dizia com as mãos postas ao céu, há de formar e ter uma grande profissão.

Nesse ponto da narrativa, Marinalva parou um pouco percebendo minhas lágrimas. Meus pais já estão no céu e eu não consegui conter as lágrimas que escorriam no meu rosto. Lembrava dos gestos de mamãe e de nossos dias naquela casa. E me emocionava também porque hoje tenho uma boa profissão. Estudei, ganho um bom salário e não preciso mais viver os sacrifícios da infância. Lamento apenas não ter tido condições de oferecer aos meus pais o conforto que lutaram para que eu tivesse.

Marinalva apenas sorria. Seu livro de memórias me proporcionava agora uma viagem a mim mesmo. Fomos para a varanda, possibilitar ao coração um pouco de calma na sua aceleração emotiva. De lá, a vista que Dona Francisca relatava. Nossa casa ainda intacta, e me veio à memória as lembranças do caminhão chegando. Eu devia ter uns três anos nesse dia, e as imagens mentais são esparsas e embaçadas pelo tempo, talvez apagadas por trabalhos tantos e por esquecimentos talvez necessários.

Ainda ouço o barulho das crianças correndo na rua, as que agora habitam a casa que um dia foi nosso lar e nosso mundo, nosso amparo e nossa proteção. Uma senhora varre a rua, retirando as folhas secas que caem da árvore plantada na calçada pelo meu pai, para dar sombra e refrescar o quarto da esquina, que recebia todo o calor do sol, o que no verão era um tremendo desconforto.

Perdido em meu olhar, sou surpreendido por Amália que ainda mantinha o indicador como marca página no grande livro da viagem dos vizinhos e das histórias recolhidas, contadas e recontadas por Dona Francisca. Após uma boa respirada ela me chama à sala e convida:

__ Vamos continuar? Este livro traz muitas novidades pra você.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 23/09/2012
Reeditado em 13/04/2013
Código do texto: T3897089
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