SOPA DE LETRINHAS

Poderia ser o início de uma mudança. Ou melhor, de uma revolução. Uma grande transformação no léxico. Ou o fim dele. Mas, quem estaria encabeçando essa guerra? Quem seria o cabeça do levante? Todas as letras do alfabeto estão em ebulição.

Os ruídos aumentam de volume, até que ninguém entende mais nada. É preciso botar ordem no ambiente. Todas as letras do abecedário, ao mesmo tempo em que discutem, se armam para uma batalha sem trégua.

Toma a palavra a letra A, depois de exigir silêncio:

- Eu, sendo a primeira das vogais, serei a vogal das vogais, ao passo que o B, primeira das consoantes, será o representante de todas vocês.

Mas, com isso não quero dizer que as demais, tanto vogais quanto consoantes, não possam intervir, desde que peçam a palavra. Questão de ordem, certo?

- Certo, responderam todas, num primeiro e raro instante de comunhão.

A letra B entra sugerindo:

- Cada uma de nós terá três minutos para sua defesa. Já que o motivo da discussão é sobre quem é mais importante do que quem, nada mais justo que cada grupo se reúna por dois minutos antes da defesa, para fundamentar com segurança e critério o seu posicionamento. Se não entrarmos em entendimento, vamos fundar um Sindicato das Letras, para nos defender...

As letras se juntam em círculos, nas extremidades da saleta e confidenciam pelo tempo estipulado. Voltam para o centro da sala e os argumentos das vogais através do A se fazem ouvir por todos:

- Nós, as vogais, estamos nos sentindo muito sobrecarregadas. Pela suma importância que temos, sendo em apenas cinco, estamos trabalhando demais, por nada. Participamos de todas as palavras, formamos interjeições, verbos, adjetivos, principalmente substantivos e não vemos retorno, sendo até chamadas de falidas e de desfalcadas.

A letra B fez um sinal e argumentou:

- O que vocês, menores, estão pretendendo com esse discurso fajuto? São apenas cinco, não têm nem contingente suficiente para nos fazer face e se dizem sobrecarregadas! Olhem que somos em número bem maior, ou seja, dezoito, prontas para servir e vocês, cinco, são apenas coadjuvantes e choronas, não merecendo qualquer destaque no cenário estrutural da escrita.

As letras k,y,w intervieram, após assinalar para as demais:

- Alto lá, dezoito, não, vinte e uma, e nós, o K, W, Y que, apesar de antigas, ainda temos a nossa função?

O B se adianta e sugere:

- Façamos o seguinte, cada uma de vocês falará no seu momento, pois se sentiram ofendidas e têm o direito de réplica!

O K se apresenta:

- Sou uma antiga e tradicional letra de nosso alfabeto, muitas vezes, imerecidamente, substituída por c e por q. Sou considerada muito chique, porque sou usada em certos estrangeirismos, em nomes próprios estrangeiros ou derivados e em símbolos e abreviaturas de uso internacional. Dou vida ao karaokê, corro nas pistas com o kart, faço parte do know-how dos excelentes profissionais e participo das siglas de pesos e medidas e outros que não pretendo citar agora, por absoluta falta de tempo. O Y se adianta:

- Faço minhas as palavras da companheira, às quais acrescento que eu participo das coordenadas cartesianas, sou um símbolo da incógnita, numa equação ou problema. Adquiro até uma conotação sensual, sem ser libertina, na palavra chinesa yang, que representa o princípio masculino, ativo, celeste, quente e luminoso; ao passo que, formando o termo yin, que é um princípio feminino passivo, terrestre, absorvente, frio e escuro... Ambos se locupletam através de mim, falei bonito?

O W, que, pacientemente, esperava sua vez, se manifestou:

- Também tenho sido amargamente substituída pelo u ou pelo v, mas sou importante em muitas palavras bacanas. O que acham de walkie-talkie, aparelho de transmissão radiofônica a certa distância, através de um similar. E o watt, medida de potência no sistema internacional! Isso sem falar no windsurfe, que maravilha! E quando precisamos de um WC, ai, que alívio! Na computação, sou inigualável, o que dizer da web, o conjunto de informações e recursos disponíveis na Internet, com documentos e outros objetos localizados em pontos diversos da rede e vinculados entre si? Sou impagável, no winchester, ou disco rígido para vocês. Nós três somos indispensáveis...

A letra A, impaciente, interrompeu:

- Chega de rasgação de seda e de puxar brasa para a própria sardinha, estão exagerando, isso é que eu sei! Estamos tão entretidas nessa discussão que nem vimos a Gramática, que chegou sem percebermos e se assentou discretamente ali no fundo da sala. Com a palavra, quem sabe tudo!

A Gramática, ignorada por um bom tempo, tomou a palavra, passou uma olhadela nos participantes daquela reunião e começou a falar:

- Já entendi tudo o que se está passando aqui. Eu, particularmente, cuido do estudo ou tratado dos fatos da linguagem e das leis naturais que a regulam. Também leva meu nome o livro onde se expõem as regras dessa linguagem. E, devo dizer a vocês, tanto da ala A, quanto da B, pois não tenho favoritos, que sempre contei e conto agora com meus auxiliares, alguns deles se encontram presentes, à minha direita, como a SINTAXE, a PROSÓDIA, a ORTOGRAFIA e a FONÉTICA.

A primeira se apresenta:

- Sou a SINTAXE, ou seja, a parte da Gramática que estuda a disposição das palavras na frase e das frases no discurso. Trabalho com palavras prontas, definitivas, vogais e consoantes que se harmonizam e se completam.

- E a senhora pretende esfriar nossos ânimos, jogar água na nossa fervura, ou estamos enganados? Pergunta um dos líderes.

- Sinto muito que pensem assim - responde a SINTAXE – para mim, reino dividido não subsiste. Se brigarem entre si, o que vai ser da nossa língua?

A PROSÓDIA, julgando oportuno, pois sempre é cuidadosa em falar na hora certa e de forma correta, interfere:

- Minha função e preocupação é a pronúncia regular das palavras, com a devida acentuação das mesmas, ou seja, o uso correto dos acentos agudo, grave, circunflexo, til, trema... Poderia pender para o lado das vogais que são acentuadas por esses sinais, mas preciso ser imparcial, para ser justa. Por isso, passo a palavra para a ORTOGRAFIA, que pode ratificar minhas colocações e acrescentar com propriedade e magnitude ao que eu disse.

- Sei que me conhecem bem, pois sou a ORTOGRAFIA, a parte da Gramática que ensina a escrever corretamente, a maneira de representar a palavra por meio da escrita gráfica. Não esperem que eu intervenha a favor deste ou daquele grupo, pois essa não é minha função. Também porque sempre me dei bem com os dois lados e colocar letras e acentos no devido lugar é meu dever, sendo consoantes ou vogais.

Os acentos que se posicionaram entre os dois grupos, diziam não ter como escolher o lado, pois não são letras, mas sinais gráficos. Sua função é fechar ou abrir, dar realce ou ênfase às vogais, para dar intensidade e diferenciar as sílabas e que não opinariam sobre as consoantes, porque sempre conviveram bem com elas.

Nesse momento, a FONÉTICA dá um passo para frente e toma a palavra:

- É importante que eu esclareça um ponto. Cuido do estudo dos sons da fala especialmente, no que diz respeito a sua produção, transmissão e recepção dos mesmos. Sobre quem é mais importante entre vogais e consoantes, vale dizer que é impossível de se conversar ou escrever sem usar a vogal e a consoante, pois toda palavra depende das duas em sua composição, para ser assimilada e compreendida.

Nesse momento, Vogais e Consoantes ficaram pensativas e se entreolhavam com indecisão.

A Gramática retoma a palavra e se dirige aos grupos, momento em que aponta para um dicionário sobre a pequena mesa:

- Para os que sabem e para os que ainda desconhecem, isto é um dicionário, onde contém um conjunto de vocábulos de uma língua, ou de termos próprios de uma ciência ou arte, dispostos alfabeticamente, e com os respectivos significados, ou a sua versão noutra língua. O lexicógrafo ou dicionarista precisa de vogais e consoantes que formam as palavras e as organiza dentro desse livro. E ele é muito importante para quem quer aprender. E dentro dele convivem vogais e consoantes em harmonia, sabiam?

- E que tem isso haver conosco, mais precisamente?

- Se as vogais e as consoantes continuarem a alimentar a guerra, a discórdia entre si, não haverá mais sílabas, nem palavras, nem sentenças, nem comunicação, nem mais nada. Vogais e consoantes se resumirão em uma simples sopa de letrinhas, o que será péssimo para toda a humanidade. Todas as letras têm sua função, estando no seu devido lugar. Não existem principais, nem subalternos, mas um conjunto perfeito e coeso, que se interagem para o bem comum.

As rebeldes, nesse instante, apresentavam um semblante mais aliviado, sem as tensões do inicio, momento em que o A quebrou o silêncio:

- E então, quem deve pedir desculpas a quem?

A letra B, cabisbaixa, levantou a cabeça e encarou suas antigas opositoras:

- Acho que ninguém deve nada a ninguém, ou melhor, umas dependemos das outras. Consoantes e vogais jamais seremos uma sopa de letrinhas, pois estamos conscientes de nossa função na escrita e na fala, não é?

Até o K que já estava cochilando acordou:

- Muito bem, acho que o desfecho foi feliz, afinal, a internet não pára e vão surgir mais siglas e símbolos do mundo científico e virtual e seremos acionadas mais vezes e contamos com a ajuda das amigas consoantes, tanto eu, como o Y e o W.

O B conclui:

- Temos muito que fazer, pois, além das milhares de palavras que já existem, ainda surgirão muitos neologismos através da moda, dos costumes, ou, ainda, termos antigos com sentido novo, de que deveremos também cuidar de incluir em nossas tarefas, para o amigo lexicógrafo ou dicionarista compilar nas páginas de seus dicionários. Exemplificando...

A letra Z, que estava em um canto sonolenta, resmungou:

- Por agora chega, não é, amigas, estou com tanto sono que nem consigo enxergar esse cartazzzzzz...

Fim