A meninazinha que queria ser passarinho... e voou.

Claribella era uma meninazinha com longos cabelos cacheados, olhos claros e uma manchinha na bochecha. Claribella sonhava em ser passarinho.

Clarinha cantava, pulava, rodopiava e girava os braços abertos no ar. Ria, ficava tonta e caia. Às vezes arranhava o joelho, muitas vezes saia correndo. Era uma menininha geniosa que tinha mania de pequeno príncipe, só se calava se obtivesse resposta.

Ela corria pelos jardins e corredores longos que apareciam, encontrava borboletas, joaninhas e marimbondos. Agitava os bracinhos querendo voar. Tinha um montão de amiguinhas que a vinham chamar. E brincavam e se riam, e Clarinha voltava chorando, não gostava de perder, não queria se calar.

Continuava sua caminhada e a cada passo aprendia um pouquinho dessa coisa complicada de voar, olhava pro céu e achava injusto que seres tão pequenos voassem tão longe e ela ali, grande, enorme, com uma vontade danada, não conseguia. A mãezinha lhe dizia: Calma que seu tempo há de chegar. A menininha impaciente queria tudo pra agora. E confiava em quem lhe dizia ter um jeito mais fácil. Corria muito, pulava de barrancos, agitava-se ao vento. E lá na escola os mestres mostravam um caminho bonito, um jeito meio complexo de chegar lá, mas ela achava complicado demais. Bellinha, ia caminhando com a cabeça cheia de sonhos, de brigas, de risos. Quando lhe puxavam o tapete, as vezes saltava, as vezes torcia o pé. O tempo passava sem se notar. A meninazinha cortou o cabelo, queria pintar de preto os olhos claros, mas ela ainda não podia, tinha umas regrinhas das quais não podia fugir, mas ela não gostava de regras.

E foi correndo, de braços sempre abertos, que sentiu pela primeira vez aquela cruel dor no coração. A meninazinha arrancava os cabelos, seus olhinhos se tingiram de vermelho, suas lágrimas inundaram o mar. Bellinha se afogou, sufocou, gritou. A mãezinha lhe deu a mão, lhe arrancou do abismo: Essa é só a primeira traição, muitas e muitas virão. Não sofra assim, não pule de todos os barrancos, isso de virar passarinho não é fácil não. Ela enxugou os olhinhos, costurou o coração, aos poucos o riso foi voltando. E Bellinha voltou às suas aulas de vôo.

Claribella conhecia muitos beija-flores, canarinhos, até alguns gaviões. Ela adorava ficar olhando pra eles, eles também não sabiam voar, mas ela não sabia disso. E começou a sentir cada vez mais vontade de ficar perto deles. Tinham cantos bonitos, asas grandes. Se encantou por uma passarinho pequeno de asas coloridas, ficava só olhando de longe, meses e meses observando suas asinhas baterem em outras direções. Seu coraçãozinho murchou, ele não enxergava seus cabelos cacheados, será que era porque os havia cortado? Suspirou, secou a lagriminha que escorreu e correu, e correu. E deixou o cabelo crescer. Agora já pintava o claro dos olhos de preto. Um pinguinho de tinta vermelha a fez achar que cresceu. Se confundia com as outras aves meninas moças que tentavam alçar vôo. Parecia feliz assim. Conheceu um passarinho que lhe trouxe um gosto de abacaxi no biquinho, mas Bellinha não gostava de abacaxi e se foi.

Um vento forte mudou sua direção,ela mudou de jardim, aprendeu, desaprendeu, cresceu, errou, caiu, conheceu cotovias e bem-te-vis. Perdeu algumas penas, sentiu pena de si, feriu um passarinho bonito. Ela só estava tentando voar.

Mas os ventos sempre mudam a direção, as vezes parecem um furacão. E Bellinha foi pra longe... longe. Não tinha mais as mesma instruções de vôo, foi aprender diferente, será que aprendeu ou esqueceu? Conheceu a Gabriela, a Ana e a Giovanna. E conheceu o João, que podia ser Pedros, Eduardos, Leonardos, Matheus ou Miguels. E roçaram asinhas, se bicaram, tentaram voar juntos. Era uma escola nova, dava pra aprender muita coisa, sair da rotina, correr muito, talvez tentar algo mais ousado. Pular de pára-quedas nos deixa pertinho do céu. E se ele não abrir? Lá bem longe tem disso, a gente tem medo no começo, mas depois toma gosto e já não quer mais voltar. A liberdade, o vento na cara, tantos cantos e encantos. Mas ave pequenina precisa voltar pro ninho, mesmo quando não quer. E não adianta pintar os olhos, fingir que é grande, não adianta fazer birra, bater o pé, fingir que é neném. Tem aquela tal cartilha, aquelas tais regras que ninguém quer, mas se não houvesse o mundo se partiria todo. E a meninazinha voltou pro ninho, asinhas grandes, topete alto. E a mãezinha, suspirava, balançava a cabeça, engolia seco. Sonhava que a menininha aprendesse a voar certinho, que aprendesse as regras do vôo, pra não se machucar, pra não perder o brilho de seus olhos claros. Mas as regras apesar de necessárias têm suas particularidades, e só a gente pode ler as entrelinhas, botar uns pontos, tirar umas vírgulas...

Claribella agora de tão grande quase alcançava o céu, seu braços compridos ou suas asas tentavam abraçar o mundo. Corria apressadamente, sem saber que devagarinho se vai mais longe e não se perde as flores do caminho. Agora na escola de gente grande, não tinha tempo pros passarinhos, enfiava seu narizinho charmoso entre os livros, se esforçava muito pra não ouvir os cantos lá de fora, não queria se dispersar. Acho que leu a cartilha e tava tentando seguir as regras. A cotovia chamava, os gaviões gritavam alto. Ela às vezes cedia aos impulsos e ia ter com eles. Dançavam, cantavam, giravam, riam alto e a cabeça girava mais. E numa dessas andanças viu um pássaro maior que os outros, se destacava pela plumagem exuberante e Claribella se aproximou, ficou bem pertinho. Tão juntinhos que as vezes se tornavam um. Deixou os livros de lado, as festas eram freqüentes, pássaros e homens têm o dom de nos encantar. E o primeiro amor nos deixa cegos, nos deixa surdos, nos deixa leves, nos faz bailar. A menina ficou lá atrás, a moça tornou-se exuberante, cabelos ao vento, olhos marcados. Mas o destino tem dessas coisas, sorri e nos ajuda mesmo quando a gente tenta se perder, alma de passarinho não sabe parar de voar. E por sorte ou merecimento Luiz Eduardo, bem ele, o pássaro de plumagem exuberante a reconduziu ao vôo certo. Juntinhos, mãos dadas e narizinhos pontudos enfiados nos livros. Estudavam, se beijavam, riam, dançavam , cresciam, estudavam mais. Se formaram juntos, viajaram juntos, brigaram muito, se afastaram, choraram, sentiram saudades. Claribella, não se sentia bela, sentia-se vazia. Uma dor atroz como um raio lancinante a partia, a reduzia a um amontoado de penas caídas a um canto. Comer e beber não tinha por que. Se afundava entre as plumas tentando dissolver suas penas. A dor corroia. A mãezinha sentou-se a beira da cama, chá e biscoitos fresquinhos. Palavras calmantes lhe reconduziam a vida: Bellinha, minha colibri, a dor só faz crescer e aprender. Andorinha só aprende a voar depois de cair do ninho. Não se pode perder o que não é da gente, e se é teu um dia volta. E o abraço secou o pranto, e os olhos se pintaram de radiosidade.

E Claribella leu, aprendeu, suspirou e divagou de saudades. Horizontes novos se abriam e seu coração sossegou. Acordar cedo, trabalhar, dia cheio, consciência tranqüila. Felicidade um tiquinho. Amigos à noite, risos, lembranças, saudades, pássaros novos, pássaros que vinham e iam. E ela se fez mais sensata, menos impulsiva, aprendeu a tangir novos vôos com cautela, mas sem nunca parar.

Corre a crescer mais depressa, e a mãezinha doente, o medo, o hospital, a tosse, a mancha vermelha. E dessa vez ela cresceu mesmo. A maturidade, o pranto, um pouco mais de medo e o telefonema no meio da tarde. E o passado lhe estende a mão e vai com ela ter e a abraça num aconchego gostoso, trazendo um pouco de paz, tirando um pouco do medo: Bellinha minha flor, isso também vai passar, e logo tua mãezinha estará de volta ao lar. Luiz Eduardo ali pertinho, abraço reconfortante, flor na mesinha de cabeceira. Sol entrando pela janela, alta, sorrisos, casa. Agradecimento, bolo e café. E a vida volta ao seu curso, trabalho e um carro a sua espera. Sair pra conversar, falar do que nunca foi esquecido, promessas, um beijo e o alívio.

E as asas voltam a crescer, o coração volta a bater. E o céu... ah o céu... é pra lá que eu quero ir.

Luiz Eduardo, a mãe, o carinho, o trabalho, a promoção, a expectativa. O conforto, alegria e mais trabalho. Claribella se sentia plena, se sentia segura, se sentia mulher. Ajudava os frágeis passarinhos recém saídos do ninho, e ajudar lhe fazia bem. Olhava os pequeninos, melequinha no nariz, mãozinhas sujas e muitos risos. Pensava em ter seu próprio ninho. Luiz Eduardo, mãos dadas, compartilhavam sonhos. Coração reto, cabeça em ordem, planos bem construídos. Clara se sentia forte, asas brancas abertas ao sol, sentia-se uma águia, voava alto, estava segura. A meninazinha aprendera a voar. (?)

Projetos bem feitos, a mãezinha, o vestido branco, flor de laranjeira, chuva de arroz, coração acelerado, lágrimas, sorrisos. A felicidade estampada, a plumagem viçosa, a força da mulher. Viagem, lua de mel, a volta. O choque, o medo, a dor. Claribella pensava de si pra consigo, que tinha virado passarinho, tinha seu amor ao lado, seu trabalho bem remunerado, adorava o trabalho voluntário e as criancinhas com rostinhos rechonchudos. Muitos planos a concretizar. E vem o destino e lhe mostrar que nada é como queremos. Não, isso não podia ser. Não podia ver sua mãezinha querida ali frágil, alquebrada, tão mal. Não pela segunda vez, e agora o quadro se mostrava bem pior. Era ela, sua fortaleza, a que tirava de abismos, a que consertava corações partidos, a que lhe ensinava a sonhar.

A mãezinha no leito, a doença, mãos dadas, chá e biscoitos fresquinhos, a tosse, a mancha vermelha, as lágrimas, noites insones, a dedicação, o carinho. A menina ao pé do leito fúnebre se dedicava a mais não poder. Comer pra que? Dormir pra que? Luiz Eduardo saudoso entendia, e de todo o seu carinho a cobria. O coração dilacerado. Cuidava da mãezinha como com ela aprendera. Alimento pro corpo e pro espírito, contar histórias, reter o tempo. O corpo definhava e a alma enobrecia. Não se ouvia um ai, só a tosse e o tormento dos dias longos e cinzentos. Cadeira de balanço, histórias pra dormir, a música suave, o beijo na face, a tosse, a dor, o amor. O agradecimento no olhar, o colo, aconchego, lembranças da infância, álbum de fotografias. Coração dilacerado, a tosse persistente, o vermelho, a mágoa. O sussurro da voz cansada: Minha avezinha, és agora uma mulher forte, aprendeu com a vida, com a dor e o amor, já pode alçar o teu vôo. O teu ninho é seguro e orgulho das tuas grandes asas levo comigo. O silêncio, o sorriso, a última lagrima, a paz. A dor lancinante, a espada cruel, o pranto, o abraço, as lágrimas infindas, o negro. Asas caídas, plumagem sem cor.

A mulher já feita se desfazia em lágrimas e caos. A ausência da presença. Claribella não tinha mais sua condutora de vôo e definitivamente teria que trilhar sozinha, teria que alçar seu próprio vôo, sem proteção, sem mão que tira do abismo, sem chá ou biscoito que tira a dor.

O tempo...

Casa nova, janelas abertas, jardim florido, borboletas, esperança no ar. Reconforto, amparo, verdade. Trabalho, volta à rotina, amigos, sorrisos tênues, pesar, saudades. Claribella na casa nova tentava se recompor, o carinho e o grande amor do marido iam clareando seus dias, o jardim pela janela a faziam lembrar da mãezinha querida, mas a dor se afastara um pouco, restava lembranças e risos. Os amigos e o trabalho a faziam renovar sua plumagem.

Dias de paz, coração em festa, ventre em flor. A esperança se renovava a medida que a barriga crescia. Luiz Eduardo a cobria de mimos, fazia-lhe as mínimas vontades. E lá dentro dois coraçõezinhos batiam juntos, dois passarinhos mexiam as asinhas dentro do confortável e aquecido ninho. Era tão bom senti-los protegidos lá dentro. Carícias, afagos, enjôos. Enxoval azul, quartinho de bebê, vômitos. Chá e biscoitos fresquinhos, pés inchados, licença do trabalho.

Cadeira de balanço, tricô, espera. Felicidade, mimos, amigas, chá de bebê. Meio da noite, bolsa que estoura, hospital, chorinho. Volta pra casa, amamentar, noites insones. Cólicas, choros, marido, amor, felicidade. E a vida seguia seu curso, e a felicidade a cada instante. Fotos, alegria, amorzinhos, fraldas, choro, amamentar. Dormir como? Dormir pra que? Trabalho e felicidade em dose dupla. Lucas e Gabriel cresciam a cada dia, lindos, saudáveis e graciosos. Eram o orgulho do pai e traziam bagunça e felicidade à casa espaçosa. Escolinha,choro, joelhinhos esfolados, risos, brincadeiras. Babá, saudades, corre pro trabalho, corre pra casa. Claribella estava plena, tinha seus três homens a seu lado. Fora novamente promovida no trabalho, os meninos eram saudáveis, fortes e bagunceiros. Sempre faziam mil perguntas sobre tudo, as quais ela respondia pacientemente. Era maravilhoso ver suas pequenas aves tentarem bater as asinhas. Trabalho incessante, férias na praia, escola, cadernos, brigas, abraços. Esconde- esconde, gritos, móveis quebrados, curativos, choros. Tudo valia a pena, o carinho, mil beijinhos, mãozinhas sujas, primeiros cabelos brancos. Fim de semana, cadeira no jardim, passarinhos correndo entre as borboletas. Trabalho árduo, correria, dia-a-dia, amor, beijo na boca, filhinhos crescendo. Clara ensina, conduz, os leva para ver o mundo, conta histórias, mostra verdades, e assim se tornam a cada dia mais confiantes. Saudosa se lembra da mãezinha e de como ela gostaria de conhecê-los. Uma leve brisa toca seu rosto como um beijo, e o coração lhe diz da presença da genitora a abençoar os seus passos. Fim de ano chegando, férias, correria, preparativos para a viagem e ouve-se um estrondo, e ouve-se um grito, e ouve se o choro, o desespero do irmão ao ver Lucas caído, a arvore era alta e o osso frágil. Bracinho quebrado e pega o carro e corre pro hospital. Coração aos pulos, preocupação, radiografias, medo, gesso. Volta pra casa, mimos, flores, chá e biscoitos fresquinhos.

Claribella recostada em sua cadeira de balanço observa os belos jovens robustos entretidos num jogo qualquer, Luiz Eduardo lê o jornal. Como lhe cai bem o cabelo grisalho e as pequenas rugas a se formarem no canto dos olhos. Ela tivera sorte, um homem bom, filhos obedientes e a saudades da mãezinha. Suas instrutoras de vôo, a mãe e a vida. Ela se tornara um passarinho, uma águia, forte, intrépida, capaz. Agora era a sua vez de instruir, de conduzir. Pedia aos céus que soubesse fazer um trabalho tão bom quanto o da mãe.

Seus cabelos cacheados, agora estavam mais curtos, seus olhos claros estavam serenos, a manchinha ainda estava lá do lado direito do seu rosto. Suas asas grandes e radiosas ocupavam o mundo inteiro. Era capaz de alçar qualquer vôo, não sem medo de cair, mas com a coragem de quem sabe que só tem o mundo nas mãos quem confia em si mesmo. O tempo passava, Clara crescia e aprendia, sempre é tempo de aprender, os filhos já homens feitos, Gabriel já a presenteara com mais uma avezinha de asinhas frágeis e olhinhos azuis.

Vida de passarinho é liberdade e prisão, é escolha e vontade, é amor e resignação, é entendimento e paciência. Algumas vezes cólera e frustração. Mas um pássaro crescido, um pássaro de verdade abre suas asas, voa por todos os espaços sem ter medo de errar, sem ter medo de ser abatido, sabe dos riscos que corre, mas não teme. Voa nas direções certas, segue o vento ou segue a bússola conforme lhe manda o coração.

O sol, o tempo, a verdade, alegria, conhecimento, felicidade. Claribella com a mão no queixo olhava agora pela janela, seus olhos claros pintados de cinza, seu cabelo cacheado agora ralinho preso num coque branquinho. Sua alma de passarinho sorria ouvindo o canto e o bater de tantas asinhas. A meninazinha virou passarinho... e voou.

Fernanda Garoli
Enviado por Fernanda Garoli em 13/01/2014
Código do texto: T4648232
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