Aquele devaneio de toda tarde

Ontem eu chorei, assim como em todas as tardes. Entretanto, ontem me ocorreram emoções com uma música que nunca havia parado para observar a letra, e então eu percebi a maneira como ela descrevia tudo que eu sentia. De maneira tão inocente, me lembrando cenas que eu sempre lutei para esquecer.

Ontem eu chorei, assim como em todas as tardes. Contudo, nas outras tardes, éramos só eu e a solidão, porém dessa vez, éramos eu e um papel que relevava o meu sofrimento.

Havia um tremendo turbilhão de visões sem qualquer sentido, que não tomavam quaisquer rumos a lugar algum. Algo sussurrava-me que eu precisaria começar a datar os meus pensamentos de alguma forma, para que eu então pudesse em algum outro momento organizá-los de uma outra maneira. Mas, é sempre assim. Sempre são frases compostas de fragmentos indefinidos como "algum" ou "qualquer" e eu sigo imaginando qual seria a "qualquer coisa" que viria a me definir.

"Esqueça isso tudo", algo me sussurrava, dessa vez, aumentando a minha confusão. Tentei datar meus pensamentos e interliga-los. "Qualquer dia desses nos vemos... Teremos alguma oportunidade de tornar isso mais intenso". Fragmentos supracitados, que nunca se manifestariam em forma de realidade, lamentavelmente. E eu continuaria aqui, com meus pensamentos hediondos, sem sair do lugar.

Um hiato imenso e silencioso estendeu-se desde o momento em que jurei pra mim aceitar o mais rápido que fosse que aquele dia se passou, até o momento em que quebrar todas as minhas juras foi uma leve inclinação para começar aquela revolta. Sim, pois havia acontecido. O porquê era só mais uma indefinição. Mas, ah, quantas vezes este Algo insistirá em me fazer sentir culpada? Meu desejo era, além de aumentar essa maldita canção, apagar do calendário todo e qualquer vestígio daquelas pessoas para que eu pudesse focar em algo melhor. Os dias me olhavam com uma cara cínica e hipócrita, e os malditos insistiam em passar sem um raio de sol que fosse.

Não bastasse toda melancolia e confusão envolvida nos meus pensamentos, os dias também se tornavam melancólicos, com uma fria chuva que caia lá fora. Como cumprir minhas promessas, demonstrando sapiência ao esquecer tudo que se passou, se o próprio universo conspirava para me derrubar com sua aparência triste? A fraqueza controlava meu corpo. Por que isso tinha de acontecer comigo? Até a astrologia me ajudava a manter-me envolta em todo aquele sentimentalismo, por que tal azar me perseguia?

Olha só, eu estou aqui, na minha frente, me olhando com esses olhos vermelhos que não refletem coisa alguma. Nem mostram coisa alguma. Nem fazem parte de coisa alguma. Eu observei cada parte de minha alma que fosse me trazer um tanto de luz. E outras almas, e outros sabores, e outros corpos. Outras coisas. Outras vidas. Mas eu jamais movi um músculo sequer para levantar desta cama e viver as minhas histórias. Eu datei informações minhas, e a partir delas criei personagens e lugares. Eu criei mundos, eu precisava fugir de algum modo: não por covardia, mas por preferência. Talvez, tudo o que me restava era aquilo. Mas, se eu parar para observar meus olhos vermelhos outra vez, talvez encontre que levantar é o que preciso. Levantar, e viver o que criei, o que inventei. Me viver. Me reinventar. E aí sim eu me veria disposta a um propósito.

Tudo aquilo era mais forte do que eu. Os traumas do passado insistiam em me perturbar. Mesmo sem ter força para levantar, viver, fazer acontecer, vivia num dilema: maior do que eu. Como fugir, se tudo o que me atormentava estava dentro de mim? Como pensar em suicídio, se milhares de pessoas lutavam para se manter em vida todos os dias? Várias questões, nenhuma resposta. O mais recomendado a fazer, era cair em prantos. Eu não tinha como fugir, então o que melhor do que se entregar? Ao menos eu podia desabafar, e aquilo era real.

Então passei a entender que não podia ser tão simples. Havia todo um universo ao meu redor. Lembrei de quando meu sorriso se dissipou ao ver minha energia se esvair, e pensei que, naquele momento, enquanto pranteava frente ao mar, enquanto pranteava debaixo daquele céu laranja e roxo e de outras cores incomuns, alguém poderia estar sendo espancado duas quadras dali. Alguma outra garota podia estar tendo sua mente e corpo violados em algum lugar, por alguém. São graus diferentes de dor. Mas são imensidões de vácuos e precipícios sem fim em todo o lugar. E eu esperava que algo me fizesse ver todas as coisas de outra forma.

A empatia que eu sentia, não me fazia sentir apenas a dor do outro, as vezes eu fingia estar vivendo a vida de outra pessoa. Usava da imaginação para gozar dos prazeres que tinha certeza que pessoas "melhores" do que eu vivenciavam todos os dias. Era bom, eu me sentia viva, o problema era quando eu abria os olhos, e percebia que nada daquilo me pertencia.

A chamada "Inexistência" era o meu artifício para a fuga. Desfrutei de todos os prazeres do mundo. Senti, ouvi, fiz. E tudo aquilo me pertencia. Fui rainha, fui deusa. Fui mito, fui lenda. E meu nome foi espalhado por todos os cantos. Eu não queria pensar que me arrependeria de qualquer coisa, não queria imaginar que aquele devaneio acabaria e eu perceberia que foi apenas um devaneio. Eu sabia que outras tardes estavam por vir e outras histórias estavam por ser contadas. Escritas. Inventadas. Eu terei um motivo e, algum dia, de algum lugar, por alguém e por mim, sem mais indefinições, eu mostrarei que todos tem um motivo. Mas lá se vinha uma outra tarde, bastava a canção começar e o clima mudar... Lá se vinha um novo dia. Ontem eu chorei, assim como em todas as tardes.