O Marco

O dia do meu diagnóstico roda em minha mente como um filme. Consigo reconstituir as cenas e recordar cada mínimo detalhe como se houvesse acabado de acontecer. Gosto de rotular esse dia como 'o marco'. É como se houvessem, para mim, duas vidas. Uma antes e uma após o marco.

Nunca vou me esquecer de como o médico parecia um gatinho assustado quando me deu a notícia. Na nossa primeira consulta ele era jovem e confiante. Um garoto, não muito mais velho que eu, que havia acabado de se formar. Seus olhos brilhavam e aquele era o seu primeiro dia em um hospital de verdade, depois de anos de residência em postos de saúde. Porém, no nosso segundo encontro, apenas algumas semanas depois, seus olhos eram opacos, se afundavam em meio às sua enormes olheiras e ele parecia ter de se esforçar muito para falar comigo de uma maneira natural. "Você tem um tumor", ele disse. "Mas não se preocupe, a maioria dos tumores são benignos e o seu certamente haverá de ser. Teremos de fazer mais alguns exames, só para termos certeza."

O dia do 'Marco' foi na nossa terceira e última consulta. Depois daquilo ele não poderia mais me atender, haveria de me encaminhar a um médico mais experiente e especialista no caso. On-co-lo-gis-ta. Oncologista. Eu nem mesmo sabia o que era e jamais sonharia que, nos meses seguintes, ele o visitaria tantas e tantas vezes. "Sinto ter de lhe dar essa notícia, mas você tem carcinoma de pulmão indiferenciado de grandes células. É uma forma de câncer pulmonar. Felizmente você está em um excelente hospital com os melhores oncologistas da cidade. Não tema, pois terá o melhor tratamento possível". Ele mentiu, não sei bem dizer se era para mim ou para si mesmo. Me lembro de apenas encará-lo, atônita, porque tudo o que eu conseguia pensar era que eu só tinha vinte e um anos.

Veja, eu era uma garota apaixonada pela vida. Estava no meio da faculdade, gostava de sair com os meus amigos, me dava bem com minha família, ia à igreja e adorava estudar. Me cuidava bem, comia de forma saudável e praticava exercícios físicos. E eu tinha planos. Milhares deles. Planejava dezenas de viagens, fazia planos de carreira para depois que me formasse, sonhava em me casar com o meu namorado e ter uma casa do meu jeito, com um cachorro, um gato e um filho. Ou uma filha. Não importava. Mas eu sabia que seria muito feliz. Eu era exatamente o tipo de garota a quem nunca se espera ter de lidar com algo assim. Não era um pesadelo. Não era uma gripe que logo passaria. Eu tinha câncer.

Nas primeiras semanas, é claro, passei pelo estágio da negação. É fato que desde antes eu sabia que havia algo errado comigo. Aquela tosse que se iniciara como de um resfriado normal se estendera por várias semanas e eu, que tanto apreciava caminhar pelas manhãs e andar de bicicleta aos fins de semana, me sentia cansada ao fazer pequenos esforços. Meu peito doía muito pela manhã, mas eu imaginava serem gases. Quando comecei a ter falta de ar frequente desconfiei que havia algo errado e procurei um médico, imaginando tratar-se de um início de pneumonia. Mesmo após o diagnóstico eu tentava levar minha vida normal, ir à faculdade, andar de bicicleta, sair com os meus amigos, como se eu fosse a mesma menina de antes. Os meus pais nem sonhavam. E como eu poderia contar? Que pais estão preparados para ouvir que a filha vai morrer?

Até que, um dia, comecei a tossir muito, senti minha garganta se fechando e era cada vez mais difícil respirar. A última coisa de que me lembro, antes de desmaiar, foi de olhar para a mão que usei para tapar a boca e ver sangue. Então eu acordei num quarto de hospital. Um médico muito gentil, um senhor de cerca de sessenta anos sorria para mim e conversava com os meus pais. A forma como eles me olhavam quebrou o meu coração. Os meus pais, sempre tão alegres e corajosos, haviam acabado de ser mortos simbolicamente pelas palavras do médico. Eles sorriam para mim mas seus olhos eram vazios. Eles sabiam, agora sabiam, e eu nunca me senti tão inerte na vida.

[Continua]

Melissa J
Enviado por Melissa J em 10/02/2015
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