Mais que a Minha Própria Vida - Capítulo 32

"Lembro-me de uma manhã em que eu havia descoberto um casulo na casca de uma árvore, no momento em que a borboleta rompia o invólucro e se preparava para sair. Esperei bastante tempo, mas estava demorando muito, e eu estava com pressa. Irritado, curvei-me e comecei a esquentar o casulo com meu hálito. Eu o esquentava e o milagre começou a acontecer diante de mim, a um ritmo mais rápido que o natural. O invólucro se abriu, a borboleta saiu se arrastando e nunca hei de esquecer o horror que senti então: suas asas ainda não estavam abertas e com todo o seu corpinho que tremia, ela se esforçava para desdobrá-las. Curvado por cima dela, eu a ajudava com o calor do meu hálito. Em vão. Era necessário um acidente natural e o desenrolar das asas devia ser feito lentamente ao sol - agora era tarde demais. Meu sopro obrigara a borboleta a se mostrar toda amarrotada, antes do tempo. Ela se agitou desesperada, alguns segundos depois morreu na palma da minha mão. Aquele pequeno cadáver é, eu acho, o peso maior que tenho na consciência. Pois, hoje entendo bem isso, é um pecado mortal forçar as leis da natureza. Temos que não nos apressar, não ficar impacientes, seguir com confiança o ritmo do Eterno."

Nikos Azanizaki

Acredito que todo processo de amadurecimento acontece metafóricamente como o das borboletas. A lagarta passa por um longo processo de transformação para virar borboleta e poder voar. Ela se alimenta de experiências para poder crescer e, após formar o casulo, ela repousa. É o tempo onde toda as experiências a aprendizagens são assimiladas, onde há o crescimento emocional, é quando ela espera até se sentir pronta o suficiente para sair do casulo e poder voar, ser livre. Há um tempo para cada coisa. Um tempo para crescer, um tempo para sair do casulo e um tempo para voar. Se qualquer parte deste processo for acelerado, os problemas virão inevitavelmente. O medo, a insegurança, e a solidão estarão juntos, andando lado-a-lado com a borboleta que teve de amadurecer antes da hora. E, então, é como se não pudesse haver futuro nenhum. A morte é iminente para a borboleta. Como será para o ser humano?

O tempo passou. O que posso dizer? Não é algo que seja muito confortável de lembrar, mas não importa quanto tempo passe, tudo fica nítido em minha mente tal e qual tivesse acontecido ontem. As palavras ditas por aquela enfermeira que faziam eco em meus ouvidos e me fazia desejar que tudo não passasse de um sonho ruim. A forma como demorei muito mais tempo do que levaria normalmente para ligar para Rachel, devido ao fato de que meus dedos tremiam descontroladamente. A vontade que me tomou de cair de joelhos no chão daquela estação de metrô e maldizer a tudo e a todos por todas as coisas ruins que aconteciam comigo. E isso era só o começo.

O enterro aconteceu de dia, de manhã mais propriamente dizendo, devido ao fato de que o meu avô falecera bem cedo. Por esse motivo, o cemitério estava estranhamente mais vazio que o normal. E mais melancólico. Olhando de longe, quando não é com você, não dá para se ter uma exata noção da sensação que é perder alguém que se ama. Principamente quando essa pessoa é tudo o que você tem.

Eu me senti assustadoramente solitária. Todos os meus amigos e muitos conhecidos apareceram para prestar suas condolências mas, claro, havia o fato de que não haveria nenhum parente por lá para consolar-me. Eu poderia dizer que pior parte fora ter de cuidar de todas as providências para a ocasião. Mas eu estaria mentindo. A pior parte mesmo foi ver ao meu avô sem vida naquele caixão e lembrar que aquela seria a última vez que o veria.

A sensação era de completo transe. Sabe quando você está em meio a um sonho estranho e, por um breve momento, você tem conciência de que está sonhando e de que nada daquilo é real? Eu me sentia exatamente assim. Só que por mais que eu tentasse pensar que acordaria e me sentiria aliviada, isso nunca aconteceu. Eu não acordei. Não era um sonho. Era somente a minha vida.

As condolências dos meus professores de ensino médio, vizinhos, colegas e amigos soavam como zumbido em meus ouvidos. Não consegui ouvir, falar,chorar, ou expressar qualquer tipo de reação. A verdade era que eu estava cansada de reagir. Eu me sentia fraca como nunca. Eu era então algum tipo de experimento de Deus a fim de ver até onde uma pessoa pode aguentar o sofrimento? Eu perderia, então, a tudo e todos que eu amava, até que não me sobrasse mais nada? Eu via todo o resto de vontade de viver escorrendo por meus dedos e me sentia fraca demais para fechá-los na tentativa de salvar algo, uma esperança talvez.

Ah, e claro, Connor Garrel estava lá. Tão perto e tão distante como nunca esteve. Chegara de carro, de fininho, com aquele seu andar misterioso de sempre e deu-me um aperto de mãos juntamente com um 'sinto muito', antes de juntar-se em meio a todos os presentes e deixar-me ali sozinha junto ao túmulo. E então eu consegui chorar. Não porque a presença dele havia sido algo a me dar forças para 'botar para fora', mas porque o seu gesto tão frio e cordial fez com que eu me sentisse sozinha como nunca.

_ E o que você queria, afinal, Jennifer? - eu me perguntei. - Que ele chegasse em um enorme cavalo branco, te tomasse nos braços e dissesse que estava tudo bem? Que dissesse que não precisava ter medo porque ele cuidaria de você agora? Que te convidaria para voltar para casa com ele, para ficar com ele para sempre, prometendo nunca, jamais deixar que você se sentisse sozinha?

Era vida real. Pior que isso, era a minha realidade. Eu não poderia sentir raiva dele. Afinal ele estava lá...Não estava? O que mais eu poderia exigir? Seria injusto exigir algo mais. Nós técnicamente mal nos conhecíamos, embora eu já achasse que o conhecia suficientemente para decidir que era ele 'o cara'. E Rachel estava lá. E todos os meus amigos. Eu sabia que eles me apoiariam se eu precisasse. Mas eu não tinha mais um 'lar' para voltar no final de tudo. E quanto a isso ninguém podia fazer nada. E eu não poderia exigir que fizessem. Era isso. Eu estava só.

Como faltavam somente dois meses para que eu completasse dezoito anos e, logo, fosse maior de idade, não havia necessidade de que o serviço social procurasse um novo lar para mim. Não havia muito espaço nos orfanatos e, bom, ninguém adotaria uma menina da minha idade. Em razão disso, eu recebi apenas uma certa quantia em dinheiro, suficientemente para arcar com alguns custos até que eu fizesse dezoito anos. E fui apresentada a um tutor que me acompanharia em todo e qualquer ato jurídico até que eu fosse maior de idade. Como não faltava muito tempo, não fora muito dinheiro.

É claro que a herança do meu avô iria toda para mim. Eu era a única pessoa que ele tinha. Mas, como eu já sabia, era apenas o suficiente para que pagar aos meus anos de faculdade e minha alimentação por algum tempo. Apenas por algum tempo. Eu teria de me virar sozinha. Arrumar algum emprego onde eu ganhesse suficientemente para sustentar-me.

Ah, sim. Eu sei bem qual era a coisa mais sensata a fazer. Abandonar a faculdade e dar um jeito de decidir como eu sobreviveria sozinha. E era o que eu faria. Mas no momento em que pisei na minha antiga casa,de mãos dadas com Rachel, a imagem do meu avô fazendo-me prometer que eu nunca abandonaria o meu sonho surgiu em minha mente. E daí a última coisa que eu me sentia era uma pessoa sensata.

_ Rachel, eu vou voltar.

_ Como, J.? Amiga, não dá mais. O melhor a fazer é ficar aqui e dar um jeito de se reestabelecer. Talvez, com suas ótimas notas, você até consiga uma bolsa numa faculdade daqui.

_ O que não dá mais é continuar a morar aqui. Dormir sozinha no meu quarto. Olhar cada canto dessa casa silenciosa e saber que meu avô não está mais aqui. Eu não consigo, Rachel. Eu juro que queria ser forte, mas eu não vou. E além do mais eu fiz uma promessa. Eu jurei que nunca abandonaria meu sonho. Foi meio que o último desejo dele. Como eu posso, então, abandonar tudo agora?

_ Mas como você vai fazer? Agora o dinheiro é suficiente. Mas logo vai acabar. E você estuda numa universidede cara. Como vai se sustentar?

_ Eu... - murmurei - Eu dou um jeito. Sei que posso dar.

_ Amiga, eu posso tentar convencer a minha mãe a deixar você morar lá em casa. A gente arruma um emprego pra você e você ajuda com os custos. Vai ser melhor assim, sabe? Seremos como sua família. Eu sempre considerei você a minha irmã mesmo. - ela disse, tentando me confortar com um sorriso.

A mãe dela talvez aceitasse. Mas eu seria um incômodo. Eu tinha hábitos absolutamente diferentes dos deles, e eu já tinha quase dezoito anos de idade. Será mesmo que os pais de Rachel gostariam de ter três garotas dessa idade morando na casa? E se eu lhes desse trabalho? Eu sabia que eu teria os pesadelos, as crises de medo, e todo aquele emocional abalado, exatamente como foi quando perdi aos meus pais. Foram problemas com os quais meu avô necessitou de uma paciência de leão para lidar. E não acho que outra pessoa pudesse conseguir. E além de tudo o pai de Rachel estava com problemas nos rins, precisando de repouso e sossego absoluto. Isso significava uma fonte de renda a menos, e eu sabia bem o peso que isso tudo estava sendo para eles. Eu seria só mais um fardo, aceito somente por uma boa dose de pena, e eu não queria isso. Eu não poderia ficar.

_ Eu vou ficar bem. - prometi, abraçando-lhe forte - Você precisa me deixar ir. Agora tudo o que eu preciso é fazer boas escolhas. E é isso o que quero.

_ Tem certeza?

_ Sim. E será melhor assim, você sabe. Eu posso arrumar um emprego, conversar com o reitor com a intenção de pedir um auxílio maior. Será bom pra mim me formar. Ser alguém na vida. Senão terão sido apenas anos e anos de esforço pessoal e colégio caro jogados fora. E eu prometi. Isso é importante. Ele me fez prometer por várias vezes e por todas eu disse sim.

Não sei dizer se foi a decisão mais corajosa ou a mais covarde do mundo, mas foi exatamente a que tomei. Eu voltei para Liverpool, absolutamente sozinha e prematura, pois a porta do amadurecimento havia sido escancarada em minha frente e não havia outra coisa a fazer senão seguir por ela. Queria poder dizer que trazia dentro de mim uma inexplicável força de vontade para seguir em frente. Mas estaria mentindo. Eu voltava para Liverpool com o único intuito de sobreviver e de superar, como eu sempre fizera. E, ainda que a sensação do medo do futuro incerto amedrontasse-me o tempo todo, eu nada podia fazer. Não havia nenhum colo, nenhum porto seguro que me tomaria nos braços absorta em lágrimas. Eu tinha somente a mim mesma. E se eu estragasse tudo? Bem, eu não teria mais nada.

Melissa J
Enviado por Melissa J em 23/03/2015
Código do texto: T5180840
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